O cérebro do senhor André fica cada dia mais apertado dentro de sua cabeça, que se reduz. Essa foi a definição do jovem médico que lhe atende. Essa redução leva junto a memória do senhor André. Ninguém tem um diagnóstico exato sobre sua condição, então o médico recorre a esta metáfora. E com ela, é como se avisasse, por enquanto não há muito o que fazer. Nas visitas que faz à mansão do senhor André, o que sobrou ao doutor foi lhe contar histórias, que não se acabam nunca e, por mais que colegas digam ao médico que aquilo é inútil, afinal André esquecerá tudo na manhã seguinte, o doutor é aguerrido e segue em seu método experimental, que começará agora que ele chega à casa do senhor André, dirigindo seu carro popular, afinal ainda paga o Fies.
A cuidadora avisa, o médico chegou Senhor André, e este resiste, faz pirraça, fecha a cara, mas quando a cuidadora diz que haverá contação de história, senhor André, como todos os dias, abre um sorriso e aguarda o médico deitado, balançando os pés ao som de uma música alegre, como uma criança aguarda o beijo da mãe na hora de dormir. O médico entra, limpa o suor, bebe meio copo d’água. Retira da pasta uma folha impressa e começa a história do dia.
Existia um menino que vivia numa casa que não era sua, num quarto que não era seu, numa cama que não lhe cabia e se livrava do calor com um ventilador em curto. Os lençóis que se cobria tinham cheiro de guardado, ou melhor, cheiro de usado – por alguém, que não ele. O que o menino fazia ali? Acompanhava sua mãe. O que sua mãe fazia ali? A mãe trabalhava naquela casa. O menino por muito tempo teve medo do mundo lá fora. Mas logo foi crescendo, crescendo, e entendendo que o medo dele era na verdade o medo da mãe. Ela dizia ao filho: não podemos ir embora, onde vamos viver se sairmos daqui?
O primeiro passo foi devolver o medo a quem lhe era dona de direito. Quando virou um adolescente, disse à mãe que queria fazer faculdade, mas ela respondeu que isso lá era coisa pra eles, que nada. Que era melhor fazer curso de jardinagem pra trabalhar na casa, que o patrão precisava de muitos funcionários. E que com certeza o patrão não ia gostar nada daquilo, de ver ele perder a oportunidade. Patrão, mãe? Ingenuidade ou cumplicidade, talvez as duas coisas, mas o que a mãe chamava de patrão era na verdade um senhor que a escravizava dezesseis horas por dia, sem final de semana, sem feriado, sem férias nem Natal, com a desculpa de que ela devia a ele por conta do aluguel do quartinho de empregadas.
Não houve tempo para ela ver o filho se formar. Antes do reencontro ela morreu. De desgosto, o filho sabe, e sabe por ter conseguido fazer enfermagem e depois medicina. O menino virou médico por amor, mas no caminho encontrou uma missão: atender um homem velho, solitário, que vive sozinho com sua cuidadora e que, o médico desconfia, talvez se recorde vagamente da empregada que teve por décadas e a tratou como escrava. É por isso que o médico vem até ele. Chega, põe sua pasta no colo, limpa o suor e bebe meio copo d’água. Tira uma história escrita à mão de lá e começa a ler. No privado, seu melhor amigo já lhe disse, talvez seja mais eficaz você fazer terapia para elaborar sua raiva do passado. O médico responde: tem maneira melhor de elaborar o ódio do passado do que criando e recriando minhas histórias para ler na cara do sujeito que a produziu? Poderia mata-lo com medicação, mas não é esse o caso. O médico prefere ver a cara se contraindo, os olhinhos encherem-se de água, esse grito abafado para chamar a cuidadora que não sai voz nenhuma, porque o velho decrépito vai morrer sozinho e, tanto faz o que escuta, logo esquecerá, embora o jovem médico tenha lá sua missão e voltará aqui amanhã e depois e depois, pra contar histórias como essa, seguindo rigorosamente seu método experimental. Pelo menos até terminar de pagar o Fies.
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