Os sabores eram o seu principal contato com o mundo. Amava comer. Desde aquele acidente com a eletricidade do seu pequeno apartamento. Desde que apagou-se o seu olhar. Ela somente sentia. Sentia inclusive que havia entrado em uma caverna profunda onde a escuridão reinava e ali habituou-se a viver. Assim vivia de si e para si, quase sem auxílio de pessoas próximas. Sorria e comia, na companhia constante do cão, um velho amigo que há anos era seu companheiro no desafio diário de estar só.
Na hora das refeições, enchia de ração também o potinho do animal e afagava-lhe o pelo, como a retribuir a companhia e a atenção daquele que, entre uma lambida e outra, não a deixava um só instante, no banheiro, no mercado e até na fila do banco.
No dia em que comia carne, comprava para o amigo ração de mesmo sabor. O mesmo acontecia com a frango e os frutos do mar. Nos momentos em que exercia qualquer trabalho doméstico e também na hora do descanso, ouvia-lhe o ruído das patas e sentia nos pés o roçar de seus pelos volumosos.
Há mais de seis anos o ganhara de um namorado. Quando o relacionamento acabou ele fez por ela sua escolha, e quando as mãos do destino a cegaram, ele foi estrela solitária em seu céu negro e sombrio. A mulher já não saberia como viver sem ele.
Ela quase não adoecia, mas em certo dia frio de junho, sentiu-se muito mal e precisou ser socorrida por um vizinho. O coração, tão habituado a sentir tudo aquilo que os olhos não viam, falhou. Seriam quinze dias de internação. Ela pediu então encarecidamente que o vizinho, nesse período, olhasse sua residência e seu velho amigo.
– Amigo? Cão?
– Sim, se não for te dar trabalho.
Ele não teve coragem de contar a ela sobre o envenenamento do cão e sobre seu corpo retirado da rua já há muitas semanas. Fez apenas silêncio. Ao entrar no pequeno apartamento a pedido da mulher, o ar chegou a faltar-lhe diante do pote de ração totalmente vazio e dos brilhosos pelos dourados espalhados pelo sofá. Só não pode sentir-lhe a presença e nem ouvir-lhe os passinhos apressados. Isso era destinado somente a ela. Um privilégio dos agraciados.
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