Não se tratava de um objeto preguiçoso, onde as pessoas gostam de se deitar demoradamente. Definitivamente não! Sequer era um apelido. Ele se chamava Rede. Com certeza, um nome diferente para um ser humano, ou quase isso.
Morava dentro do espelho. Passava a existência tão somente refletindo as ações de seu outro eu. Aliás, sequer tinha direito a uma existência contínua, apenas sentia o chamado à vida (será que podia chamar assim?) quando o outro se deparava frente à algum anteparo capaz de refletir aquela imagem. Fora isso, era um nada absoluto.
Restava-lhe, tão somente, o passatempo de observar o seu humano fonte, muito atentamente, desde pequeno. Os primeiros dentes, as caretas no espelho, o uniforme novo da escola, nada passava despercebido. Com o transcurso inevitável do tempo, coisas mais interessantes apareciam: salões de festa, elevadores de prédios luxuosos, a barba sendo retirada. Esse era um ritual peculiar, a cada descer da lâmina pelo rosto de seu outro eu, havia aquele gesto de três batidas da gilete na pia, para soltar os pelos retidos no aparelho.
Certa vez, demorou a entender o que estava acontecendo. Estava vendo tudo acontecer de um ângulo diferente, de cima para baixo. Geralmente, o rapaz matriz o encarava de frente, mas Rede pôde perceber que, dessa vez, estava no teto. E o outro eu lá embaixo, deitado, sem roupas. Deitada sobre ele, havia uma mulher. O humano olhava diretamente nos olhos da imagem, como se pudesse e quisesse enxergar cada detalhe que somente Rede seria capaz de lhe mostrar. O reflexo sentiu uma conexão imediata com seu dono. Depois, veio a inveja.
Rede não entendia por qual motivo podia testemunhar tudo aquilo que acontecia, sem nunca poder vivenciar. Desejava ter seu próprio corpo: comer, lavar o rosto, participar de reuniões. E, sobretudo, desejava experimentar, por si mesmo, o prazer que exalava do olhar de seu outro eu naquele dia em que testemunhou a cena inteira a partir distante visão que o teto lhe proporcionava.
Começou a bolar seu plano. Talvez fosse capaz de mudar de lugar. Quando o outro eu esbarrava em algum espelho, Rede buscava reunir todas as suas forças e tentava puxá-lo para dentro. Sempre sem sucesso. Não conseguia nada além de reproduzir os gestos de sua matriz.
Em um sábado a tarde, o outro eu foi a uma loja de móveis: havia uma grande diversidade de camas, armários e muitos, muitos espelhos. Estava acompanhado de uma bela jovem, mas Rede não tinha certeza se era a mesma mulher que contemplara meses atrás, completamente nua. A ele só interessava uma coisa: desejava ardentemente abandonar a condição de mera imagem.
Aquele ambiente todo espelhado permitia ao reflexo acompanhar a cena a partir de muitos referenciais diferentes. Bateu os olhos em uma penteadeira muito antiga. Seu humano e a companheira não puderam perceber, mas havia algumas inscrições, redigidas em uma língua estranha, entalhadas na madeira. O espelho daquele móvel inusitado estava muito polido, brilhante demais, refletindo todas as luzes do estabelecimento com um brilho inescapável, sedutor.
O outro eu, magneticamente atraído, tocou o vidro do espelho. Rapidamente, foi enredado por seu reflexo. Rede não entendeu como aquilo era possível, mas estava do lado de fora e agora era o outro quem estava do lado de dentro. Não teve dúvidas. Virou o móvel no chão, estilhaçando o espelho da penteadeira. Saiu em disparada, experimentando a sensação única de ter um corpo próprio, uma vida autônoma. Nem se incomodou com os funcionários da loja, que saíram correndo em seu encalço. Tampouco prestou atenção nos clamores e indagações daquela doce jovem que, desesperadamente, não parava de gritar:
– O que você está fazendo? Era meu presente de casamento. Você ficou maluco? Volta aqui! EDER, EDER… volta aqui!
Mal sabia ela que seu verdadeiro noivo estava preso, para sempre, nos cacos que cobriam o chão. Eder, recolhido pela pá, havia sido capturado pela rede mágica criada pelo móvel amaldiçoado e utilizada com total sucesso por sua própria imagem.
Parabéns, Alexandre! Absolutamente intrigante, inquietante, inusitado, fantástico e real… Maravilhoso!!! 👏👏👏👏👏🤩🤩
Cláudio Lessa, nosso mais novo amigo Aleatório, muito obrigado. Abraço grande 🤗