ratos

Quem é que é que viu Emma Thomas saracoteando por aí?

Emma Thomas não conseguia separar a realidade da fantasia. Vivia entre uma e outra e, às vezes, juntava as duas numa só. Estava sempre se machucando. Num belo dia, num acesso incompreensível de fúria, certamente com um espírito ruim incorporado, após gritar aos quatro ventos que não suportava mais aquela vida miserável, e de ter me surpreendido de tão bêbado, atingindo-me com uma espécie de porrete de ferro, rachando a minha cabeça ao meio… Nem bem tive tempo de qualquer reação e senti o caldo quente jorrando face abaixo embaçando a minha visão, de sangue e dor, e entorpecendo os meus sentidos ainda instáveis pelos efeitos da bebedeira da véspera. Mal consegui distinguir o seu vulto esquálido, avistando sombras foscas em movimentos tortos e desesperados; em fuga… Ela simplesmente se foi, se distanciando do alcance das minhas mãos e saindo do meu campo de visão. Catou as suas coisinhas mais necessárias, documentos e poucas roupas, enfim, alcançou a porta da porta do nosso barraco e sumiria no mundo e, também, da minha vida.

Saíra de forma ruidosa, batendo a porta do nosso barraco, que não passava de uma junção de ripas de caixotes tirados de lá do lixão, assim como quase todas as nossas parcas soluções, de materiais às existenciais, que parecia tudo feito do mesmo material precário. Tudo por ali foi feito meio que de improviso, das vaidades às traquitanas; e os ressentimentos acumulados, tudo coisas de cata-catas. Quando Emma Thomas resolvera se libertar daquela forma tão descompassada, não lhe dei muita trela. Ela me esconjurou feito um satanás e, em resposta, jurei-lhe ódio eterno e com mais raiva do que ela professara, ainda que tenha sido em pensamento, mas o pensamento ruim feito com vontade tem força.

Porque Deus é adepto aos números e estatísticas, senão qual o sentido de fazer tudo aos tantos? São milhões de astros e de tudo; infinitezilhões de coisas inúteis pra bilhões de humanos inúteis se foderem pra ganhar?! Acho que bastariam umas cem ou duzentas pessoas, desde que cada um com inúmeras células. Se Deus é matemático, então também hei de ser. Quais as probabilidades dela retornar com o rabinho entre as pernas me pedindo perdão? Ainda mais do jeito que ela é fraca das ideias!? Lógico que não vai conseguir se criar longe de mim!

Satanás já foi um anjo! É o que dizem por aí, então não vejo mal algum em ser assim, meio doido e bastante fodido e com a cabeça quebrada. Não faço nada de caso pensado. Faço por instinto mesmo, vou caçá-la.

Não sei mais em qual buraco ela se enfiou, parece até que evaporou. E ninguém a viu por aí? E, se você souber de Emma Thomaz, nem me fale! Ela deve estar escondida num esconderijo bem escondido.

É só pensar nela que já sinto um gosto de sangue… Acabei, de tão emputecido, mordendo a minha própria língua.

Esta noite ouvi barulhos de arranhado no quintal. Logo pensei em ratos e pensei nela também; mas foi só por um momento bobo, de vacilo sentimentalóide.  Quando fui lá ver, era uma rataria medonha… Matei uns dez ali na hora com a mesma vontade de matar Emma… Aquilo realmente atiçou o meu paladar; gostei do efeito e comecei a alimentar essa vontade raticida, pois se tem coisa parecida com ela são os ratos; não como uma ratinha qualquer, mas uma ratazana diaba do caralho, sabe? Daquelas bem grandonas?! E não ia matar ela logo não, ia ser aos poucos, arrancando um pedaço de cada vez, um dedo num dia, uma orelha no outro… E ia comendo as carnes dela até que não sobrasse mais nada, só assim matava a minha fome junto com a vingança e, ainda, ia escondendo ela dentro de mim pra depois ir cagando ela pelos lixões que é o lugar ideal de onde ela veio e nunca devia ter saído.