Cristhian desce as escadas do túnel ultrapassando os outros pedestres. Segurando seu cavalete com sacos de bala, ele pula dois degraus de uma vez. Conforme anda, a música fica mais alta. O som faz os dentes trincarem e o punho fechar, transluzindo as veias do antebraço. “Vou acabar com esse músico desgraçado, pra ele ver que o ponto é meu”.
É uma canção de Natal. Os transeuntes cruzam o túnel em passos mais lentos que os de Christian, desejando boas vendas aos camelôs. No chão, copos de Guaravita amassados e guardanapos sujos de catchup. O cheiro de urina se mistura ao de temperos, vendidos a um real. Às vezes, há uma espécie de abalo sísmico, pelo trem que passa por cima do teto em direção à Central do Brasil.
Christian entra no túnel. Coloca o cavalete no chão, a dois passos do músico, como quem finca uma bandeira no topo de uma montanha. Arruma os sacos de bala, separando os plásticos que se enroscaram na viagem. Ele combina sabores para deixar seu mostruário colorido. As balas macias, mais sofisticadas, só vão ao cavalete mais tarde, quando ele for vender aos ricos nos restaurantes.
Por fim, coloca seu gorro vermelho, limpa a garganta e faz menção de anunciar. Mas quando vai pronunciar a primeira palavra, trava.
Uma menininha, que tem a medida das pernas da mãe, para e encara o músico ao seu lado. A mãe tenta puxar a criança, mas a menina parece hipnotizada. O músico toca Happy Xmas, de John Lennon, e os camelôs cantam baixinho a versão da Simone. A mãe diz: “gostou do clarinete, filha?” A pequena assente com a cabeça. Sem soltar a mão da menina, a mãe tira uma nota de dois reais da bolsa.
“Clarinete”, Christian sussurra. “é bom conhecer os inimigos pelo nome”.
Ele fita a caixa do clarinete aberta no chão. Vê notas de dois, de cinco e até de vinte. Olha pro seu cavalete de balas: ainda intacto. Depois olha a menininha, que se soltou de sua mãe pra dançar lentamente. No celular, Christian vê uma foto dos dois filhos, separados por uma rachadura na tela. Ele respira fundo seguidas vezes, estala o pescoço e encontra um espaço para seu anúncio. Venceria.
Após os transeuntes e camelôs cantarem baixinho “então é natal”, ele aproveita o silêncio entre os versos pra gritar “saco de bala é um real”. A coisa segue espontaneamente pelo verso “e o que você fez?”, quando ele completa com “dois reais leva três”. “Um ano termina” é complementado por “chocolate e melancia”. Quando os passantes sussurram “e nasce outra vez”, ele não diz nada.
Seu rosto descontrai e ele ameaça abrir um sorriso de satisfação ao escutar o som do clarinete ecoar. A menininha, que ia com a nota de dois em direção ao músico, para. Como quem assiste a uma partida de tênis, ela divide os olhares entre o músico e o baleiro. A menininha olha pra mãe, que aponta para o pulso, como se ali houvesse um relógio. “Resolve, filha”. A filha aponta para o cavalete. Christian dá um discreto soco no ar. Ele entrega três saquinhos de bala de chocolate para a criança e a mãe logo a puxa pelas escadas. Christian guarda a nota de dois reais e ri.
Há poucas embalagens verdes no mostruário. Ele encontra na bolsa um saquinho de hortelã para ornamentar. Afasta-se dois passos, qual um pintor tentando ver sua obra de outro ângulo. Gosta do que vê. Também é um artista.
O músico termina John Lennon e começa a tocar Hallelujah, de Leonard Cohen. Os camelôs e transeuntes acompanham a melodia com uma letra de uma versão gospel brasileira. Christian observa o coral. O olhar parece perder-se numa divagação que é apenas sua, como se questionasse algo. De repente agacha-se no chão e pega em sua bolsa um saquinho de balas macias. Sua mão está suando
quando ele se levanta e caminha em direção ao músico, que o percebe e para de tocar. Limpa o clarinete, pronto para responder qualquer ofensiva. Um trem passa sobre o túnel provocando tremores nas paredes. Os outros camelôs notam a cena.
Christian para em frente ao músico. Eles se encaram. Sobrancelhas arqueadas, respiração ofegante. “Tá achando que me intimida? O túnel é público, meu camarada, ninguém é dono do ponto”, o músico se defende. Mas Christian dá dois passos à frente e vai ao ouvido. O músico inclina-se pra trás, mas Christian espalma as duas mãos, pedindo calma, depois sinaliza para que o músico se aproxime. O rapaz coloca a orelha perto da boca de Christian, que fala: “Sabe tocar aquela do Roupa Nova?”. Eles se afastam e se olham. Christian volta a aproximar a boca da orelha do músico e sussurra “você lembra, lembra, naquele tempo eu tinha… Sabe essa?”. O músico faz um sim desordenado com a cabeça. Sim. Os olhos arregalados. Sei tocar. “Então toca”, diz Christian. “Toca agora.”
Quando o músico começa a melodia, Christian coloca o saquinho de balas sofisticadas, aquela que venderia nos restaurantes, dentro da caixa do clarinete. Em seguida volta ao seu lugar, percebendo que essa música os camelôs e transeuntes sabem cantar na versão original.
Esse texto nos deixa mais a vontade que um sapato velho. Muito bom de ouvir e melhor ainda de ler.