Futebol de rua

Pontilhando com Dona Poltilha

Ah, Dona Poltilha, Dona Poltilha… Quantos anos! Eu tinha uns 13/14 e ela já era velha. Tinha seu ritual pela manhã e tarde, fala arrastada mas firme, semblante feliz como uma preguiça, passos firmes mas lentos como de uma anciã de 90 anos, mas tinha seus 50. Levava cerca de dez minutos para atravessar dez metros de rua, esse era o espaço em que jogávamos futebol pela manhã e as vezes à tarde. Depois de cumprir todas as tarefas domésticas que me cabiam, se já não bastassem meus afazeres, ainda tinha dona Poltilha que me fazia quase sempre de seu garoto de recado e de favor, Dona Poltilha era dessa. Sentava no portão e o futebol teria que ser em câmera lenta, nem pensar em bater na dita cuja! Ela infringia todas as leis da bondade.
– Se pegar em mim, vou furar a bola! Saiam daqui, vão jogar no seu portão!

Mas ali era nosso portão, ao lado dela. Sua sisudez era de dar medo! O seu semblante parecia o céu em dia de chuva, sua pele parecida com uma camisa de linho que fica embaixo de todas as roupas, esperando uma ocasião própria para ser usada, apesar de todas essas qualidades, dada a dita senhora, ela sempre fez parte desse cenário, dessa paisagem, era como um quadro que você tira do lugar ou móvel que você tira para limpar, mas daqui a pouco está no lugar de sempre. Mas a dita senhora, mãe de João, Aristonio, Sebastião e Josafá, não usava suas proles para satisfazer suas vontades, nós que éramos como fazedores de tarefas para Dona Poltilha. Ficávamos chateado, mas no meu tempo não podia desrespeitar os mais velhos, era quase uma obrigação fazermos tudo que nos mandassem. Mas a dita senhora fazia tudo isso como se estivéssemos pagando um aluguel, por jogar futebol de frente a sua porta.
– Meu Deus, essa velha não passa!

Dez minutos era o tempo que ela levava para atravessar a rua, era preferível que um de nós fossemos na rua para ela. Os dias foram passando, até que um tombo interrompeu bruscamente sua rotina, mas para nossa surpresa, lá estava Dona Poltilha, cada vez mais ranzinza. Era fácil escutar seus gritos: “- Alguém compra pão?”,“-Quero um refrigerante!”, “-Por que não, João, Aristone, Sebastião e Josafá não fazem isso, por quê?”, pergunta o atrevido moleque “Eles tem mais o que fazer, vocês não fazem nada para ninguém! Que velha chata! PQP!”.

Morando mais perto que todos, as tarefas de rua sempre sobravam para mim, Ufa! O tempo e os anos foram passando, e Dona Poltilha cada vez mais debilitada e não menos arrogante. As peladas de futebol na rua foram diminuindo, bom… Bem menos na proporção que aumentava a sisudez da dita cuja. Os filhos e netos começaram a clamar por menos barulho. A velha estava insuportável! Nesse tempo, seus familiares (filhos e netos), começaram a botar as manguinhas de fora. Ao som de Tim Mais, Folhas, Renato e Seus Blue Caps e etc… as festinhas  começavam a acontecer. Que legal! A velha estava melhorando. Que nada! Para nossa surpresa, a dita cuja ficava na porta escolhendo quem iria participar da festa. O privilégio eram de poucos, aqueles que não negavam seus pedidos, tinham carta branca, os outros… Não preciso nem falar, né! E assim o tempo foi passando e a natureza foi mostrando o quão o tempo temos aqui. A dita cuja já bastante debilitada passou querer mais atenção. Foi aí que se revelou uma grande mulher, que sofreu muito para criar seus filhos e não queria que os mesmos sofressem nesse mundo tão desigual.

Foi em um dia de sábado, estava frio, chuvoso, relâmpagos, aqueles dias bem feio, cinzentos, parecido com Dona Poltilha, que todos reunidos conversando coisa com coisa e sem dizer nada, me passa uma coruja e dá uma risada, contado por minha vó e por várias avós que: quando uma coruja passa e solta uma risada, é sinal que alguém irá partir dessa para melhor. Para surpresa geral (claro que foi de propósito), todos olharam para Dona Poltilha, e com olhar de reprovação, respondeu: “- Não será eu!”, todos perplexos, olhavam um para o outro, e o outro para um “Vou para casa!”, aquela voz firme e sisuda, soou como uma ameaça em nossos ouvidos “Essa velha é inesquecível!”. Fomos crescendo, adolescente, homens, pais de família, avós e etc.. O tempo passa, e passa para todos… Em uma noite de sábado, chuvoso, triste e cinzento como a dita cuja, o telefone toca, comunicando na partida de Dona Poltilha para melhor. Como me sempre me interrompia com seus afazeres, fui mais uma vez interrompido pra prestar esta última homenagem a dita cuja. Fiz questão de prestar meu ultimo adeus à essa mulher sisuda e determinada.

42 anos após o canto da coruja, quatro guerras aconteceram, mais de 80 mil pessoas foram mortas, e com certeza várias corujas também. Dona Poltilha era a vizinha de frente.