morador de rua calçada

Perdão, meu amigo. Perdão! 

Ele partiu!… Dizem, e assim espero… Que partiu dessa para uma melhor. Espero, mas  não acredito nisso! Creio que a vida é única! “E que, se existir uma vida após a morte, não me  esperem, pois não vou!”, como já nos disse Frida Kahlo… Ah, e “A ausência da evidência não significa a evidência da ausência”, já nos pontuou Carl Sagan. Pois o fato de não podermos provar que existe vida após a morte é a própria prova de que não há vida após a morte! E depois da morte de meu amigo, a quem eu tinha como irmão, resolvi não chorar mais por quem não vale a pena!… Ah, cansei dessa história de amar sozinho, de que a vida é maravilhosa até a tal página dois… Na hora de virar a página, melhor trocar de livro!… 

E como há gente hipócrita nesse mundo de seus deuses! E eu sou uma prova inconteste disso!… A hipocrisia é uma arte política! A omissão e a hipocrisia são parentes… Mas, o que seriam das campanhas de “Natal sem fome” não fossem os famintos!… Que se lasquem pelo resto ano, pois o Natal é sem fome!… É tipo assim: Se está bom pra mim, que se fodam as pessoas do resto do planeta!… Poisé! 

Há poucos dias, fui visitar o túmulo do meu amigo… Na verdade, o seu sepulcro! Tirei  umas horas para ficar ali, pensando em quanto nos divertíamos juntos. Nossas histórias ao longo das estradas que traçamos juntos. Nossas expectativas… Tínhamos algumas! Mas ele se foi… E, pior, me sentia culpado pela sua morte. Eu o havia traído! 

Opa! Esqueci-me de me apresentar… Perdi a vergonha! Já posso me apresentar. Passei  alguns meses com desonra de mim mesmo… Ultrapassei essa barreira, finalmente! Portanto, direi a verdade agora… Meu nome é João… Sou um, mais um, morador das ruas… Ou,  politicamente, como quer o sistema, “morador em situação de rua”… 

Há alguns anos estou nessa condição, desonrado, solitário, indigno… Ele também vivia assim. Estou falando de meu amigo, meu irmão Bilu… Fomos a tábua de salvação um do outro…  Aliás, o seu nome era outro… Espaguete!… Isso mesmo!… Eu o encontrei à beira da Dutra… Parecia um espaguete, no molho, tal era a quantidade de sangue e de sua situação de machucados. Eu o arrastei para o meio-fio e estava tentando socorrê-lo. Sorte que na hora passou também um bom samaritano, que nos levou até sua clínica. Era um veterinário. Doutor Afonso. Bilu havia sido atropelado ao tentar atravessá-la, acho… Nunca me contou. Aliás, evitava falar sobre isso. Até o seu nome eu mudei, pois sentia que ele não gostava do outro, por  lembrar aquela situação. Virou Bilu. Depois de recuperado, ficou meu irmão, meu amigo. E passamos a cuidar um do outro. Eu era esmoler. Pedia para nós dois. Sei tocar flauta e para minha surpresa, ao tocar uma certa canção, Bilu começou a dançar. Eita! Virou atração. Começamos a fazer shows nas praças e conseguíamos algumas moedas e até cédulas.

Outro belo dia, Bilu, brincando em volta de mim, trouxe-me uma latinha vazia de refrigerante:
– Caraca!… Bela ideia, Bilu! 

Viramos catadores de reciclagem. Paramos de pedir, mas não paramos os shows. Apenas o fazíamos de data em data. Agendávamos! Achei umas roupinhas de bebê, fantasia de palhacinho e vesti Bilu à rigor. Ficou uma gracinha!… Tinham que ver aquele fofurinha, fantasiado, dançando ao som de minha canção!… Ai, que saudades!… Ai!… Desculpem! 

Um dono de minimercado doou-me um carrinho do qual iria se livrar. Pronto, já tínhamos carrinho. E saíamos pelos bairros catando coisas para vender. Dava para sobreviver… Até  chegar aquele bendito bairro onde Bilu fora assassinado. Isso mesmo! E eu me sentia culpado!
– Moço, moço… O senhor que é dono daquele cachorrinho?
– Oi, moça!… Sim, sou eu mesmo!… Não sou dono, somos amigos!… O nome dele é Bilu!… Nome artístico!… O nome verdadeiro dele é Espaguete, mas ele não gosta!
– Ah, sim… Já tive a oportunidade de vê-lo na praça, dançando… Ele é uma gracinha! Cadê ele?
– Deve estar brincado com algum grupo de crianças e as ensinando a dançar. Ele adora!
– Pois tenha cuidado, moço… Sou cliente do açougue do seu Marcolino… E percebi que ele odeia o Bilu…
– Não acredito!… Ninguém odeia o Bilu! 

E foi assim que perdi o meu irmão… Ele ficava olhando as carnes do açougue… Dificilmente tínhamos carne em nossas refeições! Acho que não resistiu! E a mulher me avisou!… Ele foi lá, viu a oportunidade e surrupiou um naco de alcatra. Muitos vieram em sua perseguição. Conseguimos fugir, mas… Um quilo de alcatra vale mais do que a vida… A vida do meu amigo! 

Hoje, ele jaz com os nossos sonhos!

Meu amigo… Meu irmão, Bilu! 

Perdão, meu amigo… Perdão!