bandeira costura

Penetrante

Depois de pedra, virar aço foi fácil. Difícil é não ter identidade, raciocínio, capacidade de ser gente, restringida à condição de objeto. Físico, material, objetivo; consequência da máquina, molhado do suor de quem trabalha…

Comecei a minha carreira esculpida nos ossos, pertinho da morte; ou emoldurada no chifre do corno. Ganhei notoriedade à partir do minério bruto, primeiro fui ferro, adiante aço. Cada vez mais resistente, perfurante, eficiente.

São as confissões de um objeto inanimado, pontiagudo, com formato esguio, ressentido de um buraco no meio da testa. Nunca será doutor, presidente, juiz, deputado estadual ou senador da República.

Estamos diante de quem participou do acolhimento ao recém-nascido, da confecção do caixão, da reforma da farda larga, da amiga da cueca furada, da assistência à calcinha desbeiçada . Eis a salva guarda, o CTI da calça rasgada, o socorro das bainhas mal feitas, a última tentativa de usar o blusão de estimação, a guardiã dos remendos, a contentora das arestas.

A célebre criação do criador, a alavanca da moda, a confidente da ética, prima da estética, assessora do Rei Sol, genitora da moda. A digníssima anfitriã que apoiou os ombros da aristocracia e cobriu a nudez dos necessitados.

Já aqui, na colônia portuguesa, do outro lado do oceano, registrou os passos da monarquia, a formação da classe dominante brasileira. Sem distinção de poder aquisitivo, emoldurou o corpo dos escravos, acompanhou a subida ao Morro da Providência, testemunhando a fundação da primeira favela no Brasil.

A emponderada relíquia viu o Rio menino, constatou a paixão dos poetas românticos, a lamúria dos escritores realistas, a libertação proposta pela Semana de Arte Moderna.

A estimada ferramenta penetrou em todos os cantos, sobreviveu às guerras, às discussões de casal, aos golpes militares da República nacional, às depressões econômicas do capitalismo.

Sempre alerta a qualquer tipo de pano, tecido ou pânico social; consciente do seu papel de conciliadora das partes, da união da cor com o desejo. Ganha imortalidade protegendo a fragilidade, ansiosa de cobrir o corpo animal com zelo.

O eficiente instrumento suturou o coração do aflito, uniu as tripas do intestino, contribuiu com a beleza das mulheres, livrou das pedras nos rins, enlaçou os tecidos da barriga da mãe, está em todas as considerações, sobreviverá ao contexto sendo eterna.

A arteira agulha, querido leitor, com simpatia, costurou a nossa história…