Você já separou as roupas que precisa. Não todas que gostaria, os cachecóis ficam, lá é sempre morno, e os vestidos, shorts e blusas fresquinhas já ocuparam a primeira mala. Você só pode levar duas. Duas malas. Na outra tem que estar tudo que precisará na nova vida: livros, quais vão, filmes, quais ficam, coisas com valor sentimental, algumas você descarta, outras você quebra. Você olha os cacos no chão e vê sua lembrança espatifada. Percebe que cada objeto deixado pra trás é uma memória que, cedo ou tarde, se esgotará, porque a memória precisava do objeto para existir. Seu sobrinho-neto poderá te dizer, leve fotos, tia Elza. Mas é paradoxal: você possui fotografias da juventude e nem precisa delas para lembrar dos bailes de carnaval que, pra você, só acabavam de manhã, só de manhã — sobretudo o baile de 59, você tem certeza de que foi 59, quando recebeu o beijo do rapaz vestido de marujo; já seus últimos anos são tão fragmentados na memória que você pensa, como seria bom um retratinho daquela ida à praia, pena que suas sobrinhas fazem várias fotos, mas você não vê nenhuma, estão na internet, dizem, mas você as quer no porta-retratos, você as quer na geladeira presas por um imã da Ultragás. O problema, as sobrinhas te dizem, é que as fotos reveladas estão fora de moda, assim como você. Você está fora de moda. Sua casa também está. Por isso ela será vendida pra uma construtora. Um neto vai casar, o outro precisa pagar faculdade, a doença congênita do bisneto requer tratamento, e você se sente até útil sabendo que a casa que preservou por cinco décadas vá alimentar tantas necessidades, mas sabe que é impossível reduzir um lar de 120 metros a duas malas que terão de caber num quarto de asilo. Pra esquecer a melancolia, você tenta fechar a segunda mala, a mala das frivolidades, mas ela não fecha. Ela não fecha e você senta, com dificuldade, sobre ela. Você tateia o zíper e o movimenta em círculo. A mala enfim está fechada, mas você tem a impressão de que nunca mais vai poder levantar. Seu corpo não tem forças para se erguer sozinho, e seu sobrinho-neto só chegará de manhã para leva-la ao lar de idosos. Você admite a derrota e deita-se sobre a mala, porém, magicamente, ela transforma-se num barco, um barco no qual você navega de volta ao carnaval de 59, e lá está o marujo, ele traz consigo remos e vocês partem na mala-barco em direção a alguma ilha atemporal. Se ele te cansar com seus bíceps de Popeye, você, num riso de canto de boca, irá afoga-lo a seco e seguirá para outras ilhas atemporais, pulando de baile em baile, afinal, o carnaval pra você só acaba de manhã.
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Carlos Mendes
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