citação

Para calar personagens escandalosos (uma citação)

No princípio era o verbo. Mentira. No princípio eram grunhidos, sussurros; mas, principalmente… gritos. […] Na pré-história, o grito era uma arma, uma estratégia de sobrevivência: quem elevava sua voz a tons altos amedrontava predadores. […] Hoje, quem grita, é chamado de louco. Principalmente as mulheres. Se você for um roteirista da novela das sete da Globo e quiser retratar uma mulher irritada, coloque uns gritos na boca dela. O público curte. O primeiro problema do seu roteiro é que as mulheres não são todas histéricas na vida real e que a histeria não tem apenas os berros como sintoma; o segundo problema é que você não escreve pra Globo. […] Gritar, hoje, não soa bem – literalmente. […] A história da civilização humana é a história da domesticação do grito. […] Bem, agora estou aqui em minha casa (silenciosa) tentando escrever. Odeio gritos, mas não sou o centro do mundo, então não posso dizer que meu ódio deva ser o padrão (embora eu possa odiar, porque odiar de maneira direcionada me faz muito bem). Escrevo a partir de um ambiente silencioso, isso não pode ser desprezado. Mas o que vocês não sabem é que, dentro da minha cabeça, tem sempre uma gritaria danada. […] Acho que a pré-história, quando acabou, se mudou para a minha cabeça. […] Meus personagens, quando ainda estão na imaginação, parecem viver no Paleolítico: querem ganhar a vez no grito. […] Mas a história que eu gostaria de contar é a seguinte: Com a crise, uma madame precisou ir ao Mercadão de Madureira e andou de trem pela primeira vez na vida. Chocou-a, para além da sujeira e da falta de conforto dos vagões, a pobreza dos vendedores ambulantes. Uma velhinha, um cego e uma criança, aos berros, tentando vender produtos infinitamente variados. Alho. Pilha. Pente fino. Fone de ouvido. Cotonete. Eles gritavam! Mas, com o passar das estações, a madame notou que os vendedores conseguiam ganhar algum dinheiro. Ainda assim compadeceu-se das pobres criaturinhas. Até que um rapaz de vinte e poucos anos entrou no vagão carregando um isopor enorme. Dos idosos, das crianças e dos cegos, tudo bem, vá lá sentir pena, mas desse aí não, é um homem na flor da idade, pensou a madame. Contudo, ao tentar anunciar seus picolés, saiu da boca do homem na flor da idade apenas um sussurro. Ele, por mais que se esforçasse, que sua artéria da garganta quase explodisse, não era ouvido. Estava rouco. E sem voz e sem grito, nosso jovem ambulante era presa fácil aos outros vendedores do trem. Fim. […] Gostaria que os pré-históricos da minha mente pegassem uma rinite e perdessem a voz, feito o ambulante, mas os meus personagens são incaláveis e nunca adoecem. […] Nesses casos, existem duas saídas para o problema. A primeira é um pouco mais fácil: chama-se escrever; a segunda coisa que você pode fazer para calar seus personagens – e que envolve maior complexidade – seria morrer. 


Referência bibliográfica:

MAGELLA, Jonatan. Para calar personagens escandalosos. Editora Rouco. Rio de Janeiro, 2021.