Caminho pela calçada de Copacabana pensando no aniversário de 450 anos da Cidade. À minha frente, um homem com cerca de cinquenta anos demonstra seu transtorno pisando apenas nas pedras brancas. Parece uma criança brincando de amarelinha. Em instantes, caminha em zigue-zague, acompanhando o traçado das ondas brancas. Divirto-me imaginando como ele faria na época em que as ondas eram transversais. Burle Marx as colocou paralelas ao mar nos anos 70.
Distraído, começo a seguir o homem à minha frente. A um observador atento, dois doidos enfileirados, caminhando em zigue-zague pela orla de um cartão postal. O mar, as moças de pele bronzeada em seus minúsculos biquínis, as palmeiras, crianças brincando, jovens se exercitando, nada disso nos rouba o olhar. É preciso seguir cuidadosamente o traçado sinuoso das pedras brancas. Percebo que é impossível caminhar pelo calçadão sem pensar no velho adágio: “Deus escreve certo por linhas tortas”. Ou sinuosas, como neste caso. É preciso cuidar para evitar uma topada também. O piso é mais irregular do que nas fotos. E daí? Quem é que sabe que é uma imitação de uma praça de Lisboa, que foram importadas toneladas de pedras de Portugal para fazê-la? Pedras! Importaram pedras!
Tá. Foi o Pereira Passos. Aquele que comprou ratos de esgoto quando era prefeito.
Assolada pelo que parecia ser o início de uma peste bubônica, a cidade viu-se rodeada por ratos – os roedores, aqueles de quatro patas e rabo que… ah! Não estou falando de políticos. Só dos ratos mesmo. Os roedores… Está bem, você entendeu. Com ratos saindo – literalmente – dos esgotos, casos de peste bubônica surgindo, o prefeito teve a brilhante ideia de comprar ratos caçados pela população.
Tempos difíceis, apenas dezesseis anos após a abolição da escravatura, o desemprego e a fome violentando a cidade, o povo viu naquela proposta uma chance de garantir o sustento da família. Cada rato era vendido por 300 réis, valor suficiente para comprar cinco quilos de farinha de trigo. Por dia, com esforço, o cidadão conseguiria caçar uns dez ratos, o que dava para comprar apenas a refeição de um dia. Mais prático seria criar ratos e vender uma média de cem ratos por dia. Sim! Cariocas passaram a criar ratos de esgoto! É preciso tirar o chapéu à criatividade do carioca. Depois de algum tempo, a prefeitura comprou até ratos de papelão – juro! Teve gente vendendo ratos feitos com papelão e fiscais da prefeitura comprando. Verdadeiras obras de arte, claro.
Dizem que Roosevelt inspirou-se no caso dos ratos cariocas – os roedores, que fique claro – para criar o “New Deal”. Só que preferiu que os trabalhadores cavassem e tapassem buracos e não que criassem ratos. Deve ter achado menos insano.
Depois de comprar o equivalente à população de ratos estimada de todo o planeta, finalmente alguém percebeu que era uma ótima forma de distribuir um benefício social, mas não o caminho para erradicar a praga.
De toda forma, a população menos favorecida de desempregados, viúvas e imigrantes passou a ter uma boa renda que ajudou a eliminar a praga da peste e dos próprios ratos. Não sem alguma celeuma, a aquisição de ratos pela prefeitura foi finalizada. Nunca mais entraram ratos na Prefeitura do Rio. Os roedores, bem entendido.
Pereira Passos também é responsável pela aquisição de pombos e pardais. Caminhando pelo Passeio, no Centro, ao receber sobre o ombro aquela rajada certeira de um pombo, você pode interpretar como sendo um alô do antigo alcaide: “Pereira Passos manda lembranças!” – parece dizer o pombo ao acertá-lo.
No caso dos pardais, pode ser que o Prefeito que transformou o Rio de Janeiro na Cidade Maravilhosa não seja assim tão culpado. Dizem que ele encomendou melros, mas o importador teria sido enganado pelo vendedor português. Como no caso dos ratos – os roedores de rabo comprido.
Pensar na importação de pombos e pardais me remete diretamente às amendoeiras e casuarinas. As amendoeiras chegaram junto com os primeiros portugueses, mas foram redistribuídas durante o embelezamenteo da cidade no final do século XIX, ao mesmo tempo que se importavam mudas de casuarinas, aquela espécie de pinheiro que esteriliza o solo e mata todas as outras plantas em um raio de dez metros. A bem da verdade, tanto as amendoeiras quanto as casuarinas possuem seus valores: a amendoeira serve para garantir o emprego de garis nas ruas e as casuarinas nos lembram de usarmos sempre calçados na orla das praias, porque aquela pequena pinha, que só serve para fazer carvão, machuca muito o pé descalço. Mas nada disso se compara à importação dos caramujos africanos nos anos 80. Em que pese, desta vez não ter sido ideia de carioca. Mas sofremos com eles.
Aproximo-me da estátua de Drummond sentado de costas para o mar. No futuro, certamente irão lembrar que ele observava o azáfama da areia, cheirava o espumar das ondas e ouvia o marulhar, como uma poesia que só ele entendia e girarão o banco, como tentaram com a Igreja da Candelária e as ondas do Calçadão. Coisa de carioca. A estátua ainda mantém seus óculos. Os oitavos, creio. Desta vez estão soldados.
Chega de seguir o doido em seu passo apressado. Sento-me ofegante ao lado de Drummond e observo o cidadão enquanto se afasta, ziguezagueando. Finalmente olho em volta e percebo o quanto realmente a cidade é bonita, com pombos e pardais disparando suas rajadas certeiras, amendoeiras espalhando folhas, casuarinas e suas minúsculas pinhas, um doido conversando com Drummond e a calçada irregular com suas ondas bamboleantes que um sujeito persegue. É, Deus escreve certo por linhas tortas.
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“Os Ratos de Pereira Passos” ganhou o Concurso João do Rio (2005), em comemoração aos 450 anos da Cidade, patrocinado pela Prefeitura do Rio de Janeiro e Academia Carioca de Letras, empatado com outros quatro contos.
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