Ouça Chega de Saudade na versão original de João Gilberto. É um arranjo compassado e sereno. Mas eles escutam cada um dentro do seu carro a mais de 100 km/h. Não há nada mais paradoxal do que acelerar para fugir da saudade que não se localiza no espaço. Outro paradoxo é o motivo da saudade: a falta que Amora faz. A mulher com nome de fruta, espírito de bandolim e apelido de inseto poético. Os homens que aceleravam e chamavam Amora às vezes de borboleta são Paixão e Márcio, pai e filho. Um, viúvo de Amora. O outro, órfão da Borboleta. Ambos cruzam os corredores da casa com muita pressa, como se estivessem atrasados para algo que nunca irá chegar, pelo contrário, já passou. Mas saudade não se foge, saudade se vive.
O que Amora fazia por Paixão era muito mais que se podia imaginar. No início, eram dos equilíbrios, ele cozinhando, ela arrumando. Ela cantando e ele tocando. Ele lendo e ela escrevendo. Depois passou a ser ela cantando e ele ouvindo. Ela escrevendo e ele assistindo. Ele adoecendo e ela cuidando. Ele se recuperando e ela cuidando. Ele sentado e ela cuidando. Ele deitado e ela cuidando. Não era passar suas camisas de botão e suas cuecas pretas ou azuis. Era lavar, passar, cozinhar, mandar comer, mandar se arrumar direito, mandar escovar os dentes, mandar comprar as coisas certas no mercado. Márcio já com seis anos perguntou primeiro se já que boca é por onde mulher come, bebe água e fala, então qual nome que dá pro do homem? É “boco”, mãe? Depois perguntou se o pai era irmão dele já que o pai também chamava Amora de mãe – e eles nem são baianos. Ela respondeu que “É forma de falar, meu filho”. Isso, quando ela respondia, porque Amora era de silêncios e de muitas saudades. A principal delas era a saudade da mãe que se foi dormindo numa noite de domingo há muitos anos.
Teve um dia que Amora não cozinhou, não cantou, não escreveu. Só ficou ouvindo a música de João Gilberto e algumas outras. “Chega de saudade, a realidade é que sem ela não há paz, não há beleza, é só tristeza e a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai”. Apaixonada por samba, o carnaval era a única época em que queria sair pelas ruas, ver gente feliz e cantar de saudades com alguma alegria. Transformava dor em lembrança boa. Em uma noite de domingo de carnaval não teve carnaval. Chovia e os blocos foram cancelados, os desfiles amuados, até o rádio que tocava os enredos com samba tinha saído do ar. A Inocentes desfilaria no grupo especial, mas ela não quis mais assistir. Amora então passou pela sala, pai e filho assistindo alguma corrida na televisão e debatendo que era pra algum piloto trocar por pneus de chuva, parou entre eles e a tela, deu um sorriso, juntou as mãos e deu boa noite que ninguém ouviu, e mesmo assim responderam boa noite, mãe. Amora nunca mais acordou.
Desde então Paixão vai e vem do batalhão a toda velocidade. Na Dutra pega o acostamento, alavanca os olhos de gato, costura carros menores. Márcio cruza os caminhos de Belford Roxo, a antiga cidade do amor, de Castelar para o Anil, enfileirando Dutra, Brasil ou Linha Vermelha, Linha Amarela, indo e voltando da sede da empresa de segurança que administra com um amigo da época de quartel. Tanto Paixão como Márcio aceleram ao som de João Gilberto. Discutiram ao telefone porque ontem, segunda-feira, fazia um ano da partida de Amora e haviam combinado de irem homenageá-la na quadra da Inocentes de Belford Roxo.
Pegaram trânsito, desviaram de quem parava em sinal vermelho. Márcio vindo de Realengo, Paixão vindo de Japeri. Há um cruzamento entre a Avenida Doutor Carvalhães, aquela do pórtico da cidade, e a Avenida Benjamin Pinto Dias, a que leva para o centro de Belford Roxo. Paixão a 155 km/h. Márcio a 129 km/h. “Os abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim”. Cabeças e troncos dos órfãos de Amora projetados violentamente para frente com vidros estilhaçados, ferragens perfurando peles e músculos. Pai e filho se encontraram ao som da Bossa Nova em colisão frontal para cantar que chega de saudade.. Que é pra acabar com esse negócio de você longe de mim…Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim…fim.
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