lanterninha cinema negro preto

O velho cinema novo

Aquele prédio já foi um cinema, inaugurado há setenta anos. Passou pelo tempo das grandes salas de cinema de rua, pela decadência do cinema nacional, virou cinema pornô e fechou as portas ainda nos anos noventa. Ficou muito tempo fechado. Reabriu pra ser casa de shows. Fechou. Virou abrigo de mendigo, estacionamento, açaíteria e coleção de infiltração. O prédio definhava no coração da cidade. Até que a prefeitura resolveu desapropriar e reformar. E não foi qualquer reforma. Recuperaram a fachada, todo o interior foi restaurado, refizeram o balcão e colocaram poltronas confortáveis. Ficou lindo, todo retrô. Parecia um cinema francês. A onda retrô foi tão forte que decidiram procurar quem tinha sido o último lanterninha do cinema. Os mais novos não sabiam nem o que fazia um lanterninha no cinema.

Assim encontraram o Seu Alberto, morando bem distante do centro da cidade. Aposentado, porém ainda bem sacudido, foi convidado a reviver a antiga profissão. Ficou radiante. Relembrou de quando começou vendendo amendoim na porta do cinema, virou bilheteiro e depois lanterninha. Assinou a carteira de trabalho novamente e esperou ansioso o grande dia da reinauguração.

No dia e hora marcados, Seu Alberto está lá todo arrumado e uniformizado. Ficou encantado com a reforma. Já imaginou a sala cheia de centenas de pessoas iluminadas apenas pela luz do projetor. Mas antes de começar o expediente, o gerente do cinema passa o serviço pro lanterninha:
– Seu Alberto, cuida pra que todo mundo esteja sentado antes do filme começar.
– Eu sei, meu filho. Fui lanterninha nesse cinema por mais de vinte anos. Teve uma vez que…
– Tá bom, tá bom. Só peço que o senhor tome conta de todos e não deixe ninguém filmar a tela. Nada de pau de selfie. Lembra que o importante é…
– Pau de quem!?
– Corre que já vão começar a entrar na sala. Confio na sua experiência. Vai dar tudo certo.

E lá vai Seu Alberto, feliz em reviver sua antiga profissão. Se sentindo útil, valorizado… até que entram os primeiros adolescentes. A agitação deles era tanta que o velho lanterninha não conseguia acompanhar.
– Menino, senta ali! Não pode sentar no colo do coleguinha não! Nada de Pau de Elvis, não pode!
– O que é isso!? Pau de quem? – pergunta o rapaz surpreso com o novo nome do apetrecho.
– É um negócio de filmar a tela. Não pode! O dono do cinema não deixa.

Pronto. Era tudo o que a molecada precisava pra infernizar a vida do Seu Alberto. Mal o filme começa e lá vai ele pra terceira fila coordenar a garotada:
– Que negócio é esse, menina? Beija o menino de um lado e a menina do outro?
– Hoje pode, vovô!

Seu Alberto ficou confuso e saiu dali. Não tinha Pau de Elvis envolvido, então tava tudo bem. Quando achou que estava conseguindo conter todos os jovens, um dos grupos resolveu chamar sua atenção:
– Aqui, vovô! Tá com o pau do chefe na mão! É do Michael Douglas!
– Não pode, não pode! Cadê?
– É brincadeira, vovô. Toma uma balinha pra você ficar de boa – Diz a menina colocando uma droga psicodélica bem na boca do lanterninha.

Coitado do Seu Alberto. Achou que fosse um drops inocente. Pouco a pouco a tela foi ganhando forma, como se fosse um filme 3D sem óculos. Com a boca seca, ele foi se acalmando e indo pro fundo do cinema. Relembrou os grandes filmes que ele já viu naquela sala, das filas quilométricas na porta. Antes que a sessão acabasse, sentado no chão, atrás da última cadeira, ele tomou uma decisão em voz alta:
– Lanterninha é o cacete! Amanhã vou ficar na bilheteria.