Se havia um adjetivo que não lhe cabia, era sortudo. Não mesmo, com toda certeza. Quase cinquenta anos trabalhando aqui e ali fazendo bicos e a sorte nunca aparecia. A música “Quando Será” de Zé Rodrix parecia ter sido escrita como uma forma de profecia de sua vida. Mas nada se comparava a seu último dia entre os vivos.
Entrou no ônibus – lotado, como sempre – voltando para casa. Estivera fazendo um bico de Papai Noel em um shopping e voltava para casa usando a calça de cetim vermelho da fantasia porque uma criança engoliu a chave do armário que estava em seu bolso.
Mas antes teve a criança toda cagada que a mãe colocou em seu colo. A nobre senhora soltou um “Ih, desculpe. Não tinha percebido.” Mas Jorge não teve dúvida que ela colocou a criança em seu colo para limpar o excesso que saía pela lateral da fralda. Excesso mesmo. Deve ter ficado uns dois quilos de bosta em sua perna. “Deus, como fede!” Pensou enquanto sorria sem jeito para a mãe:
– Acontece… Ho-Ho-Ho-Ho!
Foi no vestiário, lavou a calça e saiu para tomar um café, enquanto a calça secava pendurada no respiradouro do ar condicionado. Voltou, tirou o jeans desbotado, colocou o no armário, vestiu a calça vermelha, guardou a maldita chave do armário no minúsculo bolso de peito do casaco de Papai Noel e voltou para o purgatório onde as mães traziam seus pequenos demônios para atormentá-lo. Nem bem sentou, veio um pestinha, pulou em seu colo, encontrou o pequeno bolso, meteu a mão, pegou a chave e engoliu. A mãe jurou que ele entregou a chave na mão da criança, prometeu que iria processar o shopping e Jorge foi sumariamente demitido. Nem teve tempo de arrombar o armário para trocar de calça. Por pouco o gerente que o expulsou não exigiu que ele deixasse também a calça. Mas o casaco, a bota e o gorro teve que deixar.
Entrou no ônibus atrás de uma senhora com uma bolsa a tiracolo. A mulher abriu o zíper da bolsa, tirou o cartão e fechou o zíper no mesmo momento em que o motorista deu uma freada e Jorge acidentalmente ficou mais próximo do corpo da mulher… e da bolsa. A mulher fechou o zíper prendendo a parte da frente da calça de Jorge, que só percebeu quando a mulher deu um passo à frente e puxou Jorge. A mulher olhou para trás e começou a gritar, chamando Jorge de tarado. Quando os curiosos se aproximaram e perceberam que a calça de Jorge estava presa à bolsa, não teve mais conversa. Sopapo para todo lado. Jorge veio a óbito ali mesmo, no ônibus.
O ônibus foi recolhido pela perícia e só voltou a circular um mês depois. Mas o fantasma de Jorge ficou lá, assombrando o coletivo. Por pouco tempo. O veículo foi transformado em ônibus escolar e agora quem é assombrado é ele.
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