Linha amarela

O tempo do conto

Estou há sete horas tentando escrever um conto sobre a dor que sinto pelo fim do meu casamento, mas não consigo. Já rasguei papéis, fiz bolinhas, atirei-as pela janela, na lixeira, no chão. Se eu conseguisse escrever um conto sobre a dor que sinto agora, ela provavelmente desvaneceria. O conto tem esse poder de transformar o autor em personagem. E no meu conto, a personagem encontraria um sentido para o fim do amor – talvez numa epifania a partir de uma banalidade qualquer, como uma narrativa Clariceana. Digamos: numa caminhada até uma barraquinha de churrasco. Em meu conto, a protagonista caminharia até a barraquinha de churrasco do bairro, arrastando-se, mal conseguindo controlar as pernas. Pararia meio trôpega, pisando sobre a calçada disforme, e finalmente choraria em frente à churrasqueira, e sua catarse ruidosa chamaria a atenção do vendedor. Talvez o vendedor viesse acalentá-la, oferecendo-a um espetinho e uma lata de cerveja. Ela vai negar, trêmula e de cabeça baixa; mas ele vai insistir, vai te fazer bem, menina. Ela vai beber a cerveja em largos goles, a lata tremendo na mão, comerá dois pedaços generosos de maminha bem temperados, e realmente se sentirá melhor. Finalmente olhará para cima e vai notar o olhar do vendedor de churrasquinho, que persegue o dela com as pálpebras, e vai se sentir menos feia, menos descartável – vai se sentir atraente e com uma pitada inconfessável de desejo repentino. Ela vai parar de chorar, mas ainda terá aquele soluçozinho chato e meio infantil, do qual ela terá vergonha por não conseguir conter. Ele vai dizer: pode chorar, não precisa ficar constrangida. Então minha personagem vai se sentir considerada e portanto livre para cuspir pra fora uma segunda leva de lágrimas. O vendedor não vai abrir os braços, mas a personagem entenderá que é pra deitar no ombro dele, que cheira a desodorante e fumaça, aquele ombro másculo coberto parcamente pela alça frouxa de um avental que deixa mais corpo à mostra do que deveria. Ela vai se culpar por reparar no avental, no cheiro e no músculo deltóide bem torneado, é cedo demais mulher. Felizmente ele vai guiar a conversa e perguntar, quer outro espetinho? Ela dirá que não, que só parou em frente à barraquinha porque gosta do cheiro, lembra-lhe o pai que fazia churrasco aos domingos, quando a família ouvia Raça negra e era feliz, antes de tudo desandar, mas que a cerveja e o espetinho de carne ficaram de bom tamanho, valeu a pena sair da casa que a sufocara. O vendedor vai atender dois clientes e depois voltar, esperando que minha personagem desabafe o restante. Mas ela vai
evitar dizer àquele homem tudo que aconteceu, mesmo cedo já vislumbrou nele um recomeço de relação para daqui a uns meses, e não vai contar, por enquanto, que seu companheiro de década e meia foi embora de casa naquela manhã e que tem chorado por todas essas sete horas e pouco, tentando escrever um conto desde então; não vai contar que a relação já se arrastava gélida havia meses, que sexo não acontecia, que não trocavam uma palavra sequer e que ela só não o traíra por remorso antecipado; em vez disso dirá: uma amiga morreu e hoje me lembrei dela. Imediatamente após dar essa desculpa, ela se lembrará de que realmente perdeu uma amiga há algum tempo e se perguntará se a tristeza desse dia, na verdade, não é pela amiga morta em vez de ser pelo homem que partiu? É provável que muitos de nós, ao nos corroermos por estarmos mentindo, no fundo estejamos falando uma verdade tão profunda que nós mesmos não a conheçamos. O vendedor de churrasquinho vai dizer, sinto muito, e vai sorrir um sorriso gostoso. Então o ex-marido e a amiga morta estarão muito bem, obrigada, porque o mundo meio que vai se iluminar de novo depois desse sorriso. Nos dias seguintes, ela jantará religiosamente naquela barraquinha, ouvindo-o perguntar, uma Brahma e um espeto de carne?, mas também para sentir o cheiro de fumaça que lembra o pai, e não menos para vislumbrar o ombro musculoso parcamente coberto pelo avental. Depois de um mês, ao ouvir a pergunta, uma cerveja e um espetinho de carne hoje?, ela terá coragem de dizer, na praia, contigo, seria muito melhor. Após o expediente, minha personagem vai dirigir por uma Linha Amarela pouco engarrafada e em 40 minutos estarão no Recreio, com suas areias claras e extensas. Na calçada mal-acabada
do Posto 10, minha personagem vai levar os lábios até o canudo de papel e depois à boca do homem. Eles vão parar num hotel em algum sub bairro de Jacarepaguá e virar a noite por ali, com um sexo tão voraz, durante o qual ela vai, não só desnudar o ombro dele, como finalmente confessar suas fantasias, eu me masturbei pensando em você, eu quis te dar desde o primeiro dia. Na manhã seguinte, ele vai pedir para ser
deixado num açougue e ela seguirá pra casa, que não mais a sufocará. Aí então ela conseguirá escrever um conto muito interessante e autobiográfico, sobre sua vida após o divórcio, sua descoberta epifânica numa barraquinha de churrasco, de que o sentido do fim de um amor é abrir espaço a outros amores. Ela vai escrever esse conto e eu a invejo por isso. Porque eu já rasguei papéis, fiz bolinhas, atirei-as pela janela, na lixeira, no chão; já fui à barraquinha de churrasco, chorei entre os potes de farofa e molho à campanha, esperando o vendedor me notar, mas ele não me ouviu, ou fingiu que não ouviu, de modo que essa dor pelo fim não desvanece. Desvaneceria se eu conseguisse escrever esse conto aqui, mas acho que preciso de mais tempo, sete horas chorando não foram suficientes.