No sul da Alemanha, próximo ao ano 1900, por trás da janela embaçaada, o menino Johan, observava o pássaro que chafurdava sobre a neve. Louro de olhos azuis, com a pele quase tão branca como a neve que observava, contempla a felicidade de observar a liberdade do pequeno animal. Imaginava como Deus havia criado um mundo perfeito.
O pequeno pássaro voa para além de seu alcance. Religioso, por influência dos pais, o menino fez seu caminho. Inicialmente, no colégio jesuíta local, de sua pequena cidade rural, com todos os valores provincianos alemães, e depois, após pedir permissão ao seu pai, entrou no convento, numa cidade maior, próximo a Munique, decidido a seguir os caminhos de Deus.
Dedicado aos estudos bíblicos, sobressai entre seus colegas num mosteiro medieval com arquitetura gótica. Formado, nos idos de 1913, inicia suas pregações, cheias de amor ao próximo, mas a grande guerra de 1914 explode. Seu país, sua terra amada, entra em guerra com as demais potências. Seguem penúria, sofrimento, desolação e desânimo. Seu país amado começa a perder a guerra. Feridos de guerra chegam ao hospital religioso. Sente a dor e as chagas daqueles que lutaram por sua pátria. Um redemoinho de frustração, ressentimentos e ódio, emana daquele peito do jovem padre. Um conflito se estabelece naquela arena de sentimentos confusos, em que o amor ao próximo, seja de qual país for, se confunde com o amor à pátria.
Ano 1918, e a guerra termina, e seu país, perde. Miséria, fome, desesperança, e um profundo sentimento se espalham. O padre tenta consolar os seus. Anos depois, sobrecarregado de sentimentos negativos, que a leitura da bíblia não ameniza, escuta numa praça de Munique, um orador que vocifera palavras de ódio contra os traidores da pátria e convoca os alemães para a vingança. Vê ali uma esperança de superação de seus ressentimentos. Uma carta do Vaticano o convida para se deslocar para uma região da América do Sul, numa pequena cidade da Baixada Fluminense, no Brasil, onde se cultiva em larga escala a laranja, haveria o potencial de crescimento econômico, e onde a igreja deve difundir suas ideias e disseminar o evangelho. Vê nisso, a oportunidade de se exilar dos traumas da guerra.
Chega na cidade em 1930. Nada ali lembra sua Alemanha querida. Calor, população pobre, morena e negra, a maioria analfabeta, e um punhado de imigrantes italianos, proprietários das terras produtoras. Percebe que existem muitos pássaros, mas nenhum tão belo como aquele de sua cidade natal alemã. Queria civilizar essas pessoas, essa gente, e quem sabe, fazer daquela comunidade da América do Sul uma pequena cidade com perfil alemão. Era sua missão. Pouco fluente em português, se dedica a criar uma paróquia ao lado da estrada de ferro e sonha na mobilização da comunidade para construir a catedral local. O estilo arquitetônico seria o mais belo, isto é, gótico. Mantém contato através de cartas com seus parentes, e sabe então da ascensão daquele agitador nacionalista que vira em Munique ao poder. Sonha colaborar de alguma forma com aquele que se diz salvador.
Excitado por um novo messias e redentor, da derrota infligida anos atrás, e apesar de estar distante, seu coração é alemão; a bíblia em que acredita é aquela escrita em tipos góticos. A comunidade provinciana da cidade das laranjas da América do Sul, grande exportadora da fruta para todo o mundo, contribui com o dízimo, para salvação de suas almas, mas o padre remete uma parte do dízimo para a Alemanha. Em 1939, a igreja, uma construção neogótica, está pronta. Orgulhoso de sua contribuição, vendo a nova guerra na Europa se aproximar, tenta usar seus dotes de orador para aproximar a comunidade. As cartas que recebe da Europa o deixam atualizado: sabe que o dia da revanche vai chegar. Deus sabe. A bela Europa civilizada explode em guerra novamente, mas dessa vez será diferente. Durante a guerra, pede, em frente a imagem de Jesus, fixado na cruz, para que ajude a Alemanha. Sem cessar, pede aos crentes cada vez mais dízimos, na medida que a Alemanha começa a perder a guerra.
Seus sermões são temperados em mensagens ambíguas, pois não pode transparecer suas predileções. Promete enviar aos combatentes de todos os países ajuda espiritual e material, mas de fato, remete a sua querida Alemanha. Sente algo profundo em sua alma, talvez um abismo se aproximando. Mais uma vez, sua pátria perde. Desejava estar lá, consolando os seus, mas está distante.
Lembrou daquele pássaro na neve que observara na infância. Sobe então ao topo de sua catedral gótica. Sobe as escadas em direção ao topo da catedral e no meio do caminho percebe a escultura de um anjo que protege a igreja, cujo olhar é complacente. Uma pequena portinhola dá acesso à cruz, no topo da igreja, e que se situa aproximadamente a setenta metros de altura. Abre a portinhola e se posiciona ao lado da grande cruz. Observa a cidade de forma panorâmica, pois a época era o prédio mais alto e que dominava aquela cidade. Olha para baixo. Vê o povo lá embaixo, como formigas em sua lida cotidiana, indiferente ao seu sofrimento e ao destino da guerra. Há um sentimento gélido de solidão. Sente o aroma adocicado da laranja, que envolve toda a cidade, e sente pela primeira vez enjoo daquele cheiro. Observa ao longe a linha férrea e o trem maria fumaça carregado de laranjas se distanciando. Mais a frente, o morro sinuoso carregado de plantações.
O céu se carrega de nuvens cinzentas, cor de chumbo. Toda a cena lhe traz uma melancolia medieval, uma tristeza gótica. O vento quente de maio de 1945 sopra uivando, remexendo seus cabelos loiros e sua batina negra. Seu crucifixo, que pende sobre o peito, tremula ao sabor do vento. Mesmo perdendo a guerra, deixou a construção gótica, que será contemplada por todos naquele canto da América do Sul, marca de seu povo, marca de sua missão como alemão puro. Fecha os olhos azuis. Aperta o crucifixo fortemente em sua mão direita. Seu corpo finalmente se desprende da cruz no topo da catedral e despenca, como um pássaro alemão com a asa direita quebrada. Sabe que o que faz diante da bíblia é um pecado, mas diante da Alemanha é um sacrifício que só os heróis têm a coragem de realizar.
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