fábrica de para-choques

O império de pedra

Depois que a fábrica de para-choques do meu pai faliu em Belo Horizonte, ele voltou pro Rio quebrado. Foi morar na casa da minha avó, com mulher e filha pequena. Lembro de ir visita-lo e ver sua mobília acumulada na varanda. Eu apreciava o caos de sofás, tapetes e mesa, tudo revirado. Mas lembro com nitidez de uma cadeira de balanço verde.

Quando ele abriu sua fábrica de para-choques em BH – a primeira da história de Belo Horizonte – escutou de um cliente, em dois anos você fica rico, zé, como fazem os belorizontinos chamando todos e todas de . Mas o gerente de produção, que fora treinado do zero, desistiu da empreitada. Como não havia fábrica em BH, não havia outros trabalhadores que soubessem fazer o serviço. Restou ao meu pai vender as formas para pagar as dívidas e custear viagem de volta. 

Em terras cariocas conseguiu trabalho de vendedor, algo sub-humano, tendo que andar 10 quilômetros/dia pra ganhar 20 reais. Eu tinha pena. Porém aquela cadeira de balanço trazia uma outra possibilidade além da compaixão: imagina-lo numa outra vida, que havia dado certo, que trouxera dinheiro, clientes, estabilidade e que, depois de velho, ele poderia descansar no conforto do balançar sereno. 

Eu, inclusive, conhecia o caminho do sucesso. Se eu fosse um pouco mais velho (tinha 10 anos quando faliu), teria ido pra Minas com ele. Teria aprendido a profissão de laminador. Eu inventaria novos designs de para-choques para Opalas, Santanas, Escorts e Veronas. Seria eu o gerente de produção, e meu pai não teria um desistente, mas um sócio. A empresa cresceria, talvez não muito pra sermos rico em dois anos, mas o bastante para nos estabelecermos em Minas.

Eu seria um mineiro. Não um Nérso da Capitinga, estereotipado, mas um mineiro urbano, de Bêagá, que gosta de grafite em prédio e carnaval de rua. Um mineiro que escuta Lô Borges com orgulho e vaga pelos bares da Floresta. Beagá é uma cidade misteriosa para mim, onde morei em muitas noites de devaneios; um pequeno império de pedra no meio do Brasil, e eu sempre penso que existe uma outra pessoa como eu vivendo lá. Se houvesse mais tempo, não seria outro eu, e sim este eu. Eu seria parte daquele submundo autômato que pouca gente conhece. Eu teria outro sotaque, eu diria fala zé, como todo bom mineiro de BH. 

Minha vida seria baseada em pincéis, lâminas e pureoretano. Talvez eu fosse alérgico a poeira, viciado em inalar Tíner. Talvez eu morasse num quartinho nos fundos da fabriqueta. Talvez eu nem fizesse faculdade e fosse um operário orgulhoso da prática. Talvez, enfim, eu nem escrevesse literatura, e esse texto aqui jamais existisse, porque meu pai não teria fracassado, então eu não precisaria escrever para reparar sua falência. 

Muitas vezes tentei convencer meu pai a voltar pra Minas. Tentar de novo, arriscar, pegar a BR. Era como se eu dissesse, me deixe te provar que comigo você consegue ser rico em dois anos, zé. Mas ele preferiu o trabalho de 20 reais, que aos poucos aumentou o valor da diária. Preferiu a repetição dos dias e o tédio da mesmice, nesse Rio de Janeiro demodé. O império de pedra era Belo Horizonte, mas era também o obstáculo intransponível pro meu desejo.

Escrevo para transpor o rochedo. Ressuscitar o pai aventureiro. O pai que no fundo eu gostaria de ter conhecido e compartilhado da disposição de enfrentar o novo, a falência, o recomeço, o risco e as viagens. O pai que eu gostaria de ter convivido, em vez de só ouvir falar. Mas em meu tempo você já estava cansado, pai. Em minha época, o seu tempo era sempre o passado e as suas ideias eram bagunçadas como aquela mobília na varanda da avó. Não pude ser o gerente de produção na tua fábrica. Não pude te fazer rico em dois anos. Mas faço este conto, inovando como gostaria de inovar na tua fábrica. Esta narrativa é o meu para-choque. Quem sabe você leia no balanço dos teus últimos dias, .