André e Andréa, irmãos gêmeos, estudavam na mesma faculdade e pegavam diariamente o trem em Japeri. A grande distância até o local de estudo trazia ao menos uma compensação, eles sempre conseguiam viajar sentados. E, quando a composição começava a lotar para além do que seria razoável, conseguiam ficar ali, bem acomodados, o que equivalia a garantir um bote salva-vidas em meio a um naufrágio.
Após algumas semanas de viagem diária, uma figura começou a lhes chamar a atenção. Um homem, de estatura mediana, que sempre entrava em Juscelino, segurava com a mão direita na haste horizontal, fixada ao teto. Seu braço esquerdo ficava dobrado, com a mão espalmada, posicionada bem junto às costas.
Andréa sussurrava com André que, por vezes, o homem desconhecido parecia uma estátua, uma espécie de totem estrategicamente colocado no vagão. As pessoas passavam, ambulantes iam e vinham com seus produtos, mas o corpo daquele sujeito, após ser inclinado ou até mesmo deslocado pelo movimento dos outros, logo retornava a sua posição original. Tinha o olhar fixo em direção à janela, como se o tempo não passasse e a Terra não se movesse em torno do Sol. “Porém se move, como já dizia Galileu”, observou André.
Rogério, há dois anos, pegava o trem todos os dias em Juscelino. Já era acostumado aos atrasos e intempéries da Supervia desde bem antes, quando ainda morava em Morro Agudo. Mesmo assim, ainda era a forma mais rápida e barata (cada vez menos barata) de chegar ao trabalho.
Sempre olhava fixo para fora. Gostava de ver o muro que cercava a linha férrea correndo para trás, cada vez mais rápido, à medida que o trem acelerava. De quando em quando, surgia a paisagem das estações. Imaginava as histórias dos passageiros que entravam e saíam. Era sua forma de passar aqueles setenta minutos da viagem.
No entanto, já não era o mesmo garoto que passava as roletas da estação Comendador Soares. O corpo, sobretudo, não era o mesmo. Aquele tempo de pé acentuava suas dores na coluna, motivo pelo qual preferia sempre segurar nas barras de cima, para manter sua coluna o mais ereta possível.
Tinha pavor de vendedores com caixas grandes, que teimavam em trabalhar mesmo quando não cabia mais ninguém. A cada vez que avistava um ambulante era como se contemplasse um assustador fantasma, vagando ameaçador em sua direção. Ou pior, era o próprio diabo encarnado em sua forma completa: chifre, cauda, tridente, cheiro de enxofre e voz de operador de telemarketing.
Tanto temor não era em vão. Nunca esquecia do dia em que sua hérnia de disco gritava com toda intensidade. Contemplou um sujeito parrudo, que vendia bebidas e sentiu que o isopor prendera entre um passageiro e um poste. Sem pedir licença, fez um movimento brusco para prosseguir com as mercadorias. Quando conseguiu liberar a caixa, seu cotovelo esquerdo veio com toda a força, atingindo o dorso já prejudicado de Rogério. O vendedor sequer pediu desculpas e seguiu adiante, quase arrastando as pessoas a sua volta.
Foi uma dor inimaginável. Rogério tentou puxar o ar para respirar. Olhou para o teto e contemplou estrelas que nem sabia que existia. Provavelmente descobriu galáxias jamais calculadas por astrônomos ou alcançadas pelos mais poderosos telescópios.
A partir daquele momento, decidiu que precisava de uma estratégia de proteção. Pensou que colocar o braço nas costas seria uma boa ideia, pois amorteceria as colisões com objetos pesados e passantes truculentos. Desde então, nunca mais precisou passar por outra experiência tão desesperadamente dolorosa.
Quando retornou de suas memórias, percebeu que dois jovens sentados o observavam, curiosos. Logo tentou adivinhar quem seriam. Talvez se chamassem André e Andréa. Pelas mochilas, eram estudantes. Rostos muito parecidos, com certeza irmãos… gêmeos talvez. Pelos lugares em que se encontravam, deduziu que estariam vindo de Japeri. Só uma coisa Rogério não conseguia imaginar: em que eles estariam pensando?
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