Biotônico

O feitiço

Nessa época eu morava em Quintino Bocaiúva. Que lugar sensacional! Um daqueles bairros típicos carioca onde os moradores se reuniam na calçada pra jogar conversa fora, tomar uma cervejinha e se refrescar do calor suburbanamente escaldante. Meus vizinhos eram todos ótimos! Cada qual com sua peculiaridade, mas ninguém chegava a importunar. Vez ou outra rolava um bate-boca entre casal, os idosos reclamavam da janela quebrada, as crianças brigavam por causa da bola furada e sempre alguma sogra xingava o genro; coisas corriqueiras que tornam as famílias quase iguais. Eu, recém separado, vivia entre a repartição da fiscalização aduaneira no cais do porto e meu querido bairro QB. Assim, fui levando por um tempo, a minha vida quase mar-de-rosas. A repartição, àquela altura, era a minha cachaça, e a resenha no Angu do Gomes, também. Porra, mas já tava sentindo falta de um rabo de saia. 

Foi quando chegou um novo vizinho, um casal, pra ser mais exato. Eles alugaram a casa da Dona Sebastiana, coitada, morreu de apendicite. O filho tinha morrido antes, a única sobrinha alugou a casa e foi morar na zona sul. Fez muito bem! 

Meus novos vizinhos já eram coroas, uns sessenta anos ou mais. Pareciam distintos, tranquilos, senti que ia rolar uma camaradagem. Uma xícara de açúcar aqui, uma bolo de fubá ali, essas coisas que gente idosa costuma fazer quando se muda para um novo lugar. As casas eram geminadas, tipo, parede com parede. Eu podia ouvir a tosse crônica de seu Antônio e os repetidos espirros da senhora Rosalinda, um casal simpático e acima de qualquer suspeita.

Na primeira semana tudo transcorreu muito bem. Eu instalei o chuveiro pra eles e a senhora Rosalinda me deu meio quilo de café e um pote de ambrosia. Coisa fina! Na semana seguinte, mais escambos. Consertei a pia da cozinha e a fechadura do portão, ganhei uma goiabada e um pote de requeijão. Pô, coisa boa mesmo! Estava adorando as iguarias mineiras. Por último, fui consertar a cama, que estranhamente havia quebrado. Pelos préstimos de bom vizinho, ganhei um pacote de linguiça apimentada. Aí, fui pro céu! Mas logo voltei… Meia noite em ponto, comecei a ouvir um gemido e uma espécie de reza:
Pinto, roliço, feitiço, caniço. Pinto, roliço, feitiço, caniço. Pinto, roliço, feitiço, caniço.

Que porra é essa!? O que é que esses velhos tão fazendo a esse hora? Tenho que levantar às cinco da manhã pra pegar o 353!! Foram quinze noites ininterruptas desse mantra erótico. Sintonizei na rádio Tupi, tomei banho frio, li todas as manchetes dos jornais, e o mantra não cessava:
Pinto, roliço, feitiço, caniço. Pinto, roliço, feitiço, caniço. Pinto, roliço, feitiço, caniço. 

Minha olheira já denunciava as noites mal dormidas, assim como o meu mau humor. Como poderia fiscalizar qualquer coisa na aduaneira com a voz da senhora Rosalinda ressoando em meus ouvidos? Uma colega percebeu minha aflição e se aproximou pra falar comigo:
– O que é que tá pegando, Armando?

Contei a ela o motivo da minha insônia, ela deu uma puta gargalhada e me perguntou:
– Tu não tá sabendo, não? É a propaganda do novo Biotônico Canela de Velho, um xarope pra artrite, artrose, essas coisas que gente idosa costuma ter, mas rola um boato que é do tipo “levanta defunto”.   

Sábado de manhã, a senhora Rosalinda me chamou e perguntou se eu podia consertar a TV. Mas muito sem graça, ela me disse:
– Ah, meu filho, hoje não tenho nada pra te oferecer.

Fui assim mesmo, pela amizade. Quando já estava indo embora, avistei um frasco enorme do tal xarope reluzindo na última prateleira da estante. Muito mais sem graça que ela, perguntei:
– Posso levar o tônico?

Ela indagou:
– Uai, ocê também tem artrose?
– Não, mas é sempre bom prevenir!