O enterro da perna direita

Depoimento. Confesso que não sabia do que tinha dado no jornal de Iguaçu porque o estômago meu e da minha gente quando grita não faz funcionar os miolos da cabeça e o problema é que o estômago grita toda hora. Sou um homem habitado por um javali – que me falaram aí que é o animal mais faminto do mundo. Quando digo que estou morto de fome é forma de dizer de deboche só porque sou coveiro, né? Mas levo na gaiatice. Meu ganha pão é esse tanto de morte que não vira notícia e ainda bem porque se sai no jornal as pessoas morrem menos, tá ligado? Tô brincando, Cabra. Muita gente morre de morte morrida na boa e já faço meu trabalho jogando pra vala. Tô brincando, Cabra. Me compadeço – é assim mesmo que fala? – com a tristeza do povo. Mas hoje, com o agiota do Sarazá na porta do cemitério dizendo “paga ou fica por aí mesmo” na gaiatice imprópria das ameaças de pobre é que o bicho pega. Aí, né, dei os oitocentos e cinquenta e fiquei com fome pra pagar o empréstimo que peguei antes para matar a fome. Ê vida indecente, ê vida debochada. Fui lá pros fundos pra não chorar de dor na barriga, vi uma perna gorda e só a perna gorda carequinha, taquei na bolsona, chegou meu parceiro que cobre o horário, toca aqui parceiro,
e fui pra casa fazer a carne de perna. Que banquete, meu irmão! Comeu eu, comeu a patroa, comeu o Tião, comeu o agregado, comeu a coroa que não sei o nome, comeu o puto que vende Lacta roubado no trem. A tia que me dava aula lá no Brizolão ia me chamar de maluco só pelo prazer que tenho de comer isso? Sem querer ser babaca, mas ela era mó chata do carai. E você, engomadinho da tevê, para de ficar falando “ele ainda não tinha sido diagnosticado com perversão” porque gostar de sacanagem não é perversão. Como e como. Primeiro a perna e tanto faz se é de galinha ou de gente. Partiu ninho. Eu e a patroa fizemos é barulho. Sobrou carne pro almoço e pra outra janta. Depois da gozada é que prestei mais atenção no celular que a tela tá feiona quebrada e o patrão perguntando “cadê?” e eu “o que”, e ele “sumiu a perna do Doutor Emanuel, seu animal”. O enterro da perna direita do grande ricaço da região teria toda pompa e circunstância. Mas não havia mais
perna. O patrão esqueceu de me avisar, logo eu, o coveiro do plantão.

Velório todo pronto, só faltava a perna vir do IML. Só que ela já tinha chegado no Jardim da Saudade e sou pobre, pô, sou faminto e nunca tem pé de galinha pra roçar os dente, fiz banquete mesmo com a perna branca, lambemo os beiço. O molequinho chegou a chamar de papa fina. Agora, te falar, no desespero, deveria eu coveiro dar um jeito no que não tem jeito: com certeza se alguém descobrisse cairia de ameaça em cima de nós, tudo gente fresca de luto por coisa pouca, mesmo que a perna fosse muita coisa, tá ligado? Agora preciso inventar uma história fodona ou substituir a perna morta. A perna morta!

Já tô até vendo aquele papinho de “você sabe com quem você tá falando?”. Preciso do emprego. Preciso do alimento. Nunca que me arrependo de comer carne. E a carne tá cara, tá tudo caro. Nunca que me arrependo. Se eu tiver um pouco do Doutor Emanuel dentro de mim logo viro plantador de laranja, logo pego terreno, logo pego riqueza, logo boto meu canino de ouro. Mas se sou homem habitado por javali, Doutor Emanuel é homem habitado por porco. Ô sujeito filha da puta.

Mas e aí, o que faço? Olho no olho seco que tá no espelho quebrado do banheiro de chão. Em cinco minutos tenho que ir trabalhar e fui. Um catatau de gente pro tal enterro da perna direita do figurão. Patrão pergunta “cadê a perna?”. Parceiro pergunta “carai, cadê a perna?”. Tem coisa que a gente bate palma por obrigação. Engraçado que fome não dá notícia. Mas experimenta comer só pra cê vê. Espalmo a mão direita, levo ao peito, faço cara de bode sem rumo, pego rumo de novo, bora ali que explico e veio patrão, parceiro e dois parente do figurão. Fecha a porta, faz favor. Espirro a motosserra e arranco as quatro pernas dos cabra tudo, deu nem tempo de me conter, tudo piscina de sangue, abro a porta no pesadão e jogo no meio da gente fina toda apavorada “ces quer perna? Então toma perna!”.