O cabuloso

Ninguém impunemente chamava seu Antônio de cabuloso.  Virava fera. Arrebentavam as comportas do controle nervoso e na base da ignorância sua boca despejava palavrões agressivos em catadupas irrefreáveis. Fora disso, um homem inofensivo e pacato vivendo despreocupado e feliz entregue ao seu santo e bíblico ofício de carpinteiro. Um dia viu beijar ali, em torno da cabeça vazia de bom senso e cheio de ambições desmedidas, a música azul da política. Convenceram de que ser vereador era abiscoitar regalada posição, gordos subsídios, vidoca sem fazer força, sinecuras, empregos para a parentela, tornar-se em suma importante e, quem sabe, chegar a prefeito, o mais firme e seguro trampolim para Assembleia estadual. E tudo mudou na vida simples e despreocupada do artista. Passou a viver dentro desse sonho, perseguindo desesperadamente a mosca azul da edibilidade. E esta sempre a fugir-lhe, esquiva, inatingível! Na aproximação do pleito, seu Augusto não tinha mais sossego. Abandonava o doce aconchego do lar, a plaina, o serrote e a enxó, para dedicar-se exclusivamente à campanha eleitoral árdua e ingrata. Noite alta entrando pela madrugada e pichava muros, parede e calçadas. Ante a luz dos alcantilados morros circunjacentes, saía Augusto de enxada em punho, pingando suor que fazia pena, cavava no tapete verde da grama, em seguida cobrira de cal gigantesco de letreiros com seu nome. Julgava, com sua doce ingenuidade e inabalável fé, que naquelas alturas a propaganda ficava mais perto do céu e, portanto, melhor colocada para receber em primeira mão as bençãos de Deus.  Acreditava piamente que, emporcalhando a cidade de ponta a ponta com os gatafunhos de sua graça, a vitória lhe sorriria. Dona Prudência em casa, desconfiada e precavida, honrando o nome, aconselhava o marido a abandonar aquela Mania. Ele, porém, não lhe dava ouvidos e cada dia mais se enchia de planos e esperanças. Mercês era sua atividade de aliciar eleitores, vigiá-los no curral, conduzidas as sessões para votar e serviços outros correlatos, as suas novas funções de galope eleitoral, seu Augusto encontrava sempre guarida da legenda partidária. Realizado pleito, o carpinteiro emagreceria quinze quilos de mal comer e dormir e tornou-se o mais inarredável peru de junta apuradora. Munido de papel e lápis para anotar os votos, vigiava faces encaveiradas, olhos em brasa, a contagem dos votos a cada urna apurada era uma facada cruel de desilusão furando aquele balão de esperanças em que se transformava a alma de seu Augusto. Ao final, esvaziado bucho de escorçado, e corrido de vexame, além de física e economicamente arrasado, recolhia-se ao santuário do lar para derramar no seio da esposa seus queixumes contra os traidores do país. Se julgava a vítima.  e jurava nunca mais se envolver em política.

Mas seu rosto era incorrigível e, quatro anos depois, voltava a perseguir, com mais tenacidade, a grande e irisada borboleta azul dos seus sonhos. Dizem que uma ideia fixa é um cravo batido a Martelo na cabeça da criatura casmurra, inexperiente, ingênua e principalmente teimosa. A vereança era esse espinho de aço encaixado no cérebro do carpinteiro, e nem a torquês dos conselhos duplamente prudentes da consorte para arrancar aquele maldito prego enferrujado nos miolos de seu Augusto. Nas últimas eleições do nosso herói, mais uma vez candidato, repetia o jogo do partido a que se filiara:  desta vez vamos.  E atacando com redobrado furor cívico os moinhos de vento dos seus fantasmagóricos ideais, gastou o que não possuía um indivíduo se sacrificando tudo, inclusive a casa hipotecada para as despesas da campanha.

Realizava-se o último comício na praça principal da cidade e seu Augusto ia discursar.  Movimento Geral de atenção:

– Meus queridos patrícios – começou a voz metálica nos alto-falantes, que multiplicavam pelos arredores o vozeirão do candidato, que desta maneira começara a oração usando o chavão do seu eventual chefão nacional naquela eleição, porque o carpinteiro mudava de partido como de camisa. Houve um grande silêncio e, quebrando-o, fuzilou no ar vinda do seio da multidão uma palavra estridente:

– Cabuloso.

A apóstrofe, como um dardo certeiro, atingiu o orador em sua mais profunda sensibilidade, fazendo-o explodir em controlável indignação que lhe provocava a alcunha. Rubro de cólera, o olhar sobre aquele mar humano, tentava inutilmente identificar o atrevido e, dedo em riste, trêmulo, desmontado de ódio, revidou aos berros:

– Em primeiro lugar, não sou cabuloso, e em segundo, cabuloso é a mãe, seu filho da p…olítica – e desabou do coreto tropeçando tonto, às guinadas, sobre uma gargalhada imensa coletiva que reboou de ponta a ponta.

Estava assim antecipadamente derrotado pelo ridículo, o pobre artista.

 

Antenor Magalhães Amaral – nasceu em Pedreiras (MA), a 3-6-1896. Em 1942 assumiu a coletoria federal de Nova Iguaçu. 

O conto O cabuloso foi publicado na Primeira Antologia do Escritor Iguaçuano, organizada por Rodolpho Quaresma Filho, em 1971 (acervo: Maria Lúcia Alexandre)