Adebayo foi escravizado e levado a Salvador, onde seu nome iorubá foi subtraído e trocado por Damião. Nunca entendeu como aquela gente pálida podia falar tanto num deus que tudo sabe, tudo pode e que está em todos os lugares. Um deus que o padre dizia que era amor, mas que nada fazia para deter toda a crueldade praticada por seus filhos. Queria saber: por que aqueles que praticavam o mal recebiam os maiores bens? Um orixá justo como Xangô jamais poderia tolerar tanta injustiça. Damião, incomodado, pensava, pensava… Mas tentava ficar longe de problemas ainda maiores. Nunca esquecera quando seu amigo Sebastião foi chicoteado e deixado no tronco, sangrando até a morte.
Até que, em mil oitocentos e trinta e dois, Francisco foi trazido para trabalhar na lavoura, junto a Damião. Ele tinha um pequeno livreto, o qual havia sido escrito em árabe pelo próprio Pacífico Licutan. Pacífico, o líder dos malês, era capaz de reunir dezenas de africanos muçulmanos para ensinar a ler e escrever os textos sagrados, bem como para refletir e orar.
Damião não precisava de uma nova religião, mas sentia que precisava aprender a ler e escrever. Sempre que lhe era possível, frequentava escondido as reuniões do grupo de Licutan e logo aprendeu o árabe. Isso numa época em que boa parte dos homens brancos sequer sabiam ler e escrever em português.
Damião e outros, assim que aprendiam, também alfabetizavam os irmãos de África, presenteando cada um deles com algo que açoite nenhum seria capaz de retirar: não apenas conhecimento, mas a capacidade de registrá-lo por escrito. Junto com a linguagem sagrada, vinha a imagem de um deus que não era aquele dos que escravizavam, mas de alguém que lhes prometia a liberdade plena, nesse mundo ou mesmo no outro.
Quando descobriram o que Damião fazia, seus “senhores” trataram de castigá-lo. Alguns meses depois, já em mil oitocentos e trinta e quatro, ele foi vendido para o Rio de Janeiro.
Transcorrido o período aproximado de um ano, chegou para Damião a trágica notícia do massacre ocorrido, que passou para a história sob o nome de Revolta dos Malês. Na tentativa de libertarem Pacífico Licutan – preso como garantia das dívidas de seu senhor – e na luta pela liberdade de todo seu povo, centenas de africanos foram cruelmente assassinados. Eles traziam pendurados no pescoço os livretos com sua história e suas orações. Alguns daqueles livretos tinham sido redigidos dois anos antes pelo próprio Damião.
A herança de Damião, Pacífico Licutan e outros se perpetuou. Ao longo de nossa história, muitos herdeiros e herdeiras de África dedicaram-se à educação popular. Pessoas como Antonieta de Barros, Paulo Freire, Frei David, dentre tantas e tantos, ensinaram e ensinam que o conhecimento não pode ser um privilégio de poucos. Pelo contrário, precisa ser um caminho de emancipação, dignidade e liberdade para cada um de nós.
*O presente conto é uma ficção histórica, mistura fatos e personagens reais com outros fictícios.
Parabéns Bollmann, pelo lindo conto. Minha mãe sempre repetia isso: “O saber não ocupa espaço”.
Ela teria amado o seu conto.
Minha amiga Janice, que recordação bonita. Pensamento de gente sábia. Muito obrigado pelo comentário. Grande abraço