Uma análise da prática memorialista pela Arcádia Iguaçuana de Letras – AIL (Nova Iguaçu — 1950-1960)
Memory and writing of the history iguaçuana: an analysis of the memorialist practice by Arcádia Iguaçuana de Letras – AIL (Nova Iguaçu — 1950-1960)
Resumo: O artigo debate a prática memorialística de membros da Arcádia Iguaçuana de Letras (AIL) na produção da história de Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense, nas décadas de 1950 e 1960. A partir da historicização deste grêmio literário, fundado em 11 de agosto de 1955, a relação entre memorialistas e história será discutida sob a perspectiva da memória enquanto espaço de experiências e possibilidades de acionamento do passado. Com base na operação historiográfica elaborada por um destes árcades, objetiva-se refletir a linguagem escrita e sua função de armazenamento da memória, assim como analisar a produção de sentidos entre o tempo e o ato de lembrar-se desta literatura. Nesta chave, a analogia entre recordar e esquecer pode elucidar a apreensão da temporalidade por estes intelectuais na elaboração dos signos sobre a cidade. Para isto, serão interrogados fragmentos de Imagens Iguaçuanas, obra produzida pelo árcade Ruy Afrânio Peixoto, em 1962. Através das técnicas de “eternização” das lembranças, pretende-se enumerar os significados usados na construção de um tipo de saber sobre a região. Isto poderá revelar as tensões e aproximações entre “saber local” e seus usos pela historiografia hoje.
Palavras-chave: Memória; Historiografia; Baixada; Memorialistas; Arcádia.
Abstract: The article discusses the memorialistic practice of members of Arcadia Iguaçuana de Letras (AIL) in the production of the history of Nova Iguaçu, municipality of Baixada Fluminense, in the 1950s and 1960s. Based on the historicization of this literary group founded on August 11, 1955, the relationship between memorialists and history will be discussed from the perspective of memory as a space of experiences and possibilities of triggering the past. Based on the historiography operation elaborated by one of these arches, it is objected to reflect the written language and its function of storage of the Memory, as well as to analyze the production of meanings between the time and
the act of remembering this literature. In this key, the analogy between remembering and forgetting can elucidate the apprehension of temporality by these intellectuals in the elaboration of the signs on the city. For this, will be interrogated fragments of Imagens Iguaçuanas, work produced by the arcade Ruy Afrânio Peixoto in 1962. Through the techniques of “eternalization” of memories, we intend to enumerate the meanings used in the construction of a type of knowledge about the region. This may reveal the tensions and approximations between “local knowledge” and its uses for historiography today.
Keywords: Memory; Historiography; Baixada; Memorialists; Arcádia.
Nova Iguaçu, entre letras e laranjas
Nova Iguaçu, enquanto 1o distrito-sede, constituiu-se entorno de sua estação ferroviária e cresceu, principalmente, a partir da citricultura na primeira metade do século XX. Com base nas práticas de modernização do campo instauradas pelo ruralismo nos anos 1920, produtores e agentes vinculados à laranja se firmaram enquanto lideranças políticas e econômicas locais. Intervenções na lavoura fluminense ocorreram já ao final do século XIX e, com elas, a elite agrária iguaçuana. Contudo, isto foi resultado de um processo de reestruturação mais amplo após a instauração da Primeira República. Para Sônia Regina de Mendonça, “um conjunto de fatores como a abolição, redefinições do comércio internacional para produção agrícola e a instauração do regime republicano reordenou a política do grupo vinculado ao campo.” (MENDONÇA, 1997, p. 13). De acordo com autora, o ruralismo foi a resposta dos proprietários de terra às demandas e problemáticas em torno da agricultura. Nesta perspectiva, o ruralismo institucionalizou as “demandas especificas e previamente organizadas” (IBIDEM, p. 14) necessárias à manutenção da hegemonia dos proprietários, bem como a renovação do potentado político deste grupo.
Na Baixada Fluminense, a diversificação da agricultura se deu, principalmente, por Nilo Peçanha, uma vez que ao assumir a presidência do Estado do Rio de Janeiro entre 1903-1906, sua administração representou “o tipo de institucionalização oficial de interesses agrários próprios a áreas ou setores em condições menos dinâmicas de desempenho […]” (IBIDEM, p. 14). Dados confirmam que a recuperação da economia, durante os primeiros anos do regime Republicano, se deu pela fruticultura, um dos cernes de ação. A participação Iguaçuana na saída de caixas de laranjas preponderou em relação às demais regiões. Do total de 1.236.453 caixas dessa fruta exportadas pelo Estado do Rio de Janeiro, em 1931, 687.900 partiram de Nova Iguaçu. (COSTA, p.80).
Portanto, o número de investimentos de caráter estatutário nas terras iguaçuanas mobilizou esse grupo, predominantemente agrário, na pro-
moção de práticas que concretizaram a cidade enquanto espaço de modernidade. A perspectiva de urbanização do pensamento, termo cunhado por Sonia Regina, viabilizou a constituição do urbano vinculado “à potencial possibilidade de dissolução das concepções e visões do mundo tradicionalmente em vigor” (IBIDEM, p. 64). Foi neste contexto que as disputas entre as forças agrárias, com auxílio das ações de Nilo Peçanha, alcançaram êxito no estado do Rio de Janeiro.
Em Nova Iguaçu, políticos, citricultores, profissionais liberais e intelectuais se atrelaram à organicidade do município na condição de porta-vozes da narrativa histórica oficial daquele território. Para que o projeto ruralista se consolidasse através da citricultura, personagens e instituições foram acionadas com o objetivo de estabelecer uma determinada memória em torno dos sujeitos catalisadores do “progresso” municipal. Neste momento, a imprensa, sobretudo, tornou-se estratégica na difusão do campo como lugar do moderno. No município, o semanário Correio da Lavoura, jornal fundado por Silvino Azeredo2, em 22 de março de 1917, foi parte fundamental deste projeto.
Seu fundador liderou a propaganda do movimento ruralista e contribuiu para inúmeras intervenções na região da Baixada Fluminense, espe-
cialmente na sede do município iguaçuano. Pela higiene, saúde e educação, Silvino Azeredo e seus colaboradores estabeleceram um discurso no qual a vocação para as “coisas do campo” aparelhou a cidade de infraestrutura. Isto fez com que a laranja se tornasse a principal atividade econômica da região. A valorização da lavoura se perpetuou pelos anos que se seguiram, haja vista a permanência de investimentos durante a interventoria de Amaral Peixoto (1937-1945). Neste sentido, o núcleo urbano do distrito-sede configurou-se, concomitantemente, ao cultivo da laranja. As páginas do Correio da Lavoura exaltavam o aparelhamento da cidade, publicando a criação de praças, escolas, hospitais e áreas de lazer.
Para além das alusões físicas, estas ações também foram “eternizadas” em livros-memoriais. A comemoração do centenário, em 1933, data um determinado tipo de produção memorialística sobre a cidade. O livro A Memória da Fundação de Iguassú. Comemorativa do Primeiro Centenário da Fundação da Vila em 15 de janeiro de 1833, de José Matoso Maia Forte, e a Polyanthéa Comemorativa ao Primeiro Centenário do Município, na administração do prefeito Arruda Negreiro, são alguns dos exemplos que se tornarão referências em obras escritas nas décadas seguintes. Portanto, nos anos 1920 e 1930, o ato de escrever foi resultado de uma urgência em dizer algo sobre a cidade. Os lugares de memória foram mobilizados por sujeitos como Silvino Azeredo, Alfredo Jardim, Mattoso Maia, e demais pares desta rede formada a partir da citricultura, que se tornaram “guardiões de uma memória”. Com o objetivo de perpetuar uma determinada narrativa, estes atores produziram através da literatura, sentidos sobre suas ações no tempo nas três primeiras décadas do século XX. O uso desta memória foi novamente acionado na década de 1950, desta vez, por instituições como a Arcádia Iguaçuana de Letras3, espaço que reuniu personagens como Luiz Azeredo, filho do então fundador do Correio da Lavoura.
A produção de um determinado conhecimento histórico sobre Nova Iguaçu, no início do século XX, é resultado de uma memória que não se define enquanto elemento estático. Em Antropologia da Memória Joel Candau afirma não existe um centro da memória, mas algo dotado de movimento e de circulação, ou seja, “a relação presente com o passado não pode em caso algum ser confundida com uma presença efetiva desse passado” (CANDAU, 2013, p. 47). Mesmo as narrativas mobilizadas nos anos 1920 e 1930 auge da citricultura, “não são mais consideradas como imagens fieis de acontecimentos passados cuidadosamente ‘conservados’ […] num depósito […]. Há que se partir à sua procura, desalojá-las de territórios com caminhos por vezes mal balizados” (IBIDEM, p. 48).
A memória é uma produção de sentidos sociais assentados em imagens dispostas de maneira que, para Candau, “a ordem do discurso e a dos lugares se confundem, de modo que o percurso (mental) do itinerário provoque reminiscência.” (IBIDEM, p. 60). As representações da imprensa e dos livros elaborados a pedido da administração local já evidenciam que elas variam segundo as condições das sociedades e o interior destas. O conhecimento histórico produzido pelos representantes locais sobre seu presente demonstra, portanto, uma metáfora sobre eles, o tempo e o coletivo.
O “eu”, ao acionar um determinado marco espacial, o dota de significado e, para isto, “o indivíduo recebe o apoio permanente da sociedade que lhe fornece um certo número de utensílios visando facilitar-lhe a tarefa.” (IBIDEM, p. 64). O jornal, a criação de datas comemorativas e a elaboração de obras literárias com cronologia e fatos bem definidos são extensores da memória, logo difusores da tradição escrita enquanto importante álibi na difusão do memorial citricultor. A proeminência de um grupo à frente da política e da “história” oficial fez destas narrativas uma expansão da memória, ou seja, escrever sobre ela tornou-se um exercício de esquecimento para os que adquiriram o saber sobre estas recordações.
Neste sentido, estas interpretações carregaram consigo uma condição de credibilidade que lhes deu um status de verdade. Decompor a cons-
trução destas camadas de memória é fundamental para situar este saber que alicerçou a produção por outros sujeitos e instituições, nos anos que seguiram. O objetivo não é negar essa produção memorialística, mas estabelecer um diálogo e lançar questionamentos acerca destas narrativas, especialmente sobre os títulos produzidos, posteriormente, nos anos 1950 e 1960.
Os vestígios desta memória agrária, tradicional, do campo foram novamente acionados pelos membros desta elite uma vez mais, pois a:
memória coletiva quer-se mostrar como estável no tempo “a tradição”, “sempre se fez assim”, “este costume existe desde a noite dos tempos” etc., enquanto a história, por vocação, se empenha em captar a mudança. Lá onde a história se esforça por colocar o passado à distância, a memória procura fundir-se com ele (IBIDEM, p. 74). No final dos anos 1930, Nova Iguaçu passou por novas intervenções, desta vez físicas, socioeconômicas e, principalmente, políticas. A citricultura deixou de ser o motor econômico do município. O discurso em torno da crise exportadora evidenciou a preocupação por parte desta elite frente às transformações em curso na cidade. O declínio da laranja sinalizado pela imprensa à serviço dos interesses agrícolas indicou uma das estratégias para manutenção de benefícios políticos e sociais estabelecidos pelo cultivo do fruto. A tensão por de trás deste discurso dissimulava um movimento mais profundo, retalhamento e reusos do território da Baixada Fluminense.
A descaracterização física da cidade ameaçou a narrativa hegemônica consolidada pela memória citricultora, especialmente os privilégios adquiridos. Essa reconfiguração da cidade se deu pelo capital imobiliário e, posteriormente, pela expansão do setor industrial e comercial. Essa transição não pôs fim imediato aos elementos rurais, no entanto o campo não era tão mais animador, mesmo a agricultura ainda sendo predominante em todo o estado. Segundo os censos de 1940 e 1950, houve um decréscimo estadual na produção de bens alimentícios. O setor primário decresceu 35% e sua população cresceu 24%.4 (IBGE, 1959).
Produtores incorporaram estes espaços agrícolas ao meio urbano sob a forma de loteamentos, retalhando muitas das propriedades. Cogita-se que os loteamentos foram parte das práticas de uma elite ruralista decadente, haja vista o findar do projeto agrícola. Em Da laranja ao Lote, Sonali Souza discute como o fim da citricultura expandiu a malha urbana iguaçuana. De acordo com a autora, os loteamentos se concretizaram com a desvalorização da laranja e a ocupação por residências e indústrias.
O parcelamento do solo e o arrendamento de chácaras trouxeram condições propícias à produção de loteamentos, mas estes ensejaram as descontinuidades de uma relação inovadora na qual a terra passou a ser pensada sem as mediações do trabalho agrícola, como uma mercadoria claramente disputada segundo princípios de um período próprio (SOUZA, 1993, p. 37).
Para além das mudanças físicas, a dimensão política e administrativa foi igualmente rearranjada. Essas transformações aumentaram as de-
mandas urbanas e sociais da população e diversificou o seu nicho eleitoral local. A redemocratização do país e o retorno às urnas ampliou a disputa pelo eleitorado bem como a disputa entre forças partidárias por votos. Novas eleições acirraram as tensões entre o PSD (Partido Social Democrático), a UDN (União Democrática Nacional), o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e o PCB (Partido Comunista Brasileiro). Especialmente, o PTB e o PCB ganharam espaço junto à população de migrantes e trabalhadores dos bairros proletários, público em busca de novas representações políticas. Esse novo contingente populacional se concentrou, principalmente, nos demais distritos do município. Figuras como Tenório Cavalcanti exploraram economicamente a venda de loteamentos em municípios como Duque de Caxias. O crescimento do eleitorado e a instalação de novas indústrias nos distritos vislumbraram oportunidades políticas para as lideranças locais.
Neste sentido, as emancipações tornaram-se o caminho ideal para consolidação de novos representantes no cenário político da Baixada. A emancipação dos distritos de Duque de Caxias (1943), Nilópolis e São João de Meriti (1947), na mesma década, evidencia a disputa pelo território e ascensão de lideranças de caráter mais progressista. A conjuntura mobilizou novas ações em defesa da tradição e do potentado político adquirido com a citricultura. Neste sentido, na segunda parte deste trabalho, discutiremos como se deu a criação da Arcádia Iguaçuana de Letras e seu papel enquanto instituição promotora das letras e da história da cidade. Veremos que os fins do grupo foram pautados para que se enquadrasse e evidenciasse o papel de seus membros na promoção da cultura e história local. A memória instituída por alguns destes agentes e seus descendentes, nas décadas anteriores, poderia se apagar velozmente se o grupo não a “reativasse”. Advogados, médicos, jornalistas, professores e representantes do poder público constituíram uma literatura com base em suas recordações ou referências constituídas a priori. Por meio da obra Imagens Iguaçuanas, do árcade Ruy Afrânio Peixoto, fragmentos desta narrativa serão analisados com o objetivo de estabelecermos uma interlocução entre a memória da cidade e o espaço de experiências deste autor.
Nova Iguaçu vai ter sua Arcádia Literária!
Em publicação de 05 de junho de 1955, o árcade Deoclécio Dias Machado Filho expôs ao confrade Getúlio de Moura, suas preferências para designar o movimento cultural digno de louvor em curso:
A propósito da pergunta que lhe fizera sôbre se preferia a denominação de Arcádia á de Cenáculo, respondeu-nos o seguinte o Deputado Getúlio Moura, um dos valorosos integrantes do novo sodalício iguassuano: “Concordo com o seu ponto de vista. ‘Arcádia’ é a designação mais adequada ao movimento de estímulo ás belas letras iguassuanas, que ora empolga seu espírito de moço culto. […]. ‘Cenáculo’, na sua origem histórica, é a sala de jantar dos romanos. Chama-se ‘Cenáculo’ a ‘Ceia do Senhor’, consagrada na tela do Leonardo da Vinci. Em sentido figurado, significa ajuntamento de homens que professam as mesmas idéias ou seita, e também reunião de homens de letras, de artistas, etc. Pode servir de legenda ao movimento literário em perspectiva. ‘Arcádia’, entretanto, tem em seu favor a tradição [agrícola]. Em nome mais apropriado à organização que visa despertar o interêsse dos iguassuanos pela literatura, pela história e pelas belas artes pátrias”. [GRIFO NOSSO]
(CORREIO DA LAVOURA, 1955, ed. 1.994, p. 3). Fundada em 11 de agosto de 1955, a Arcádia Iguaçuana de Letras, a AIL, congregou homens das letras para que perpetuassem a cidade enquanto símbolo de inteligência e cultura dentro do estado do Rio de Janeiro.
O discurso fundamentou-se na preservação da “tradição” e dos “valores” iguaçuanos, com o objetivo de estabelecer uma literatura sobre a história do município e destacar a participação de “vultos históricos” locais. Seguindo o modelo da Academia Brasileira (ABL) e demais academias estaduais, o grupo estabeleceu ritos de imortalidade que consolidaram sua atuação na escrita da história local. Os discursos de posse, o vestuário, insígnias e referências feitas aos patronos evidenciam a manutenção da hegemonia mediante as transformações ocorridas na cidade. De forma implícita, a produção literária dos árcades também demonstrou as possibilidades e permanências frente à conjuntura de incertezas. Por isso, a instituição contou com a participação de sujeitos influentes na sociedade. Eram profissionais liberais, nascidos no município ou migrantes de outras regiões e estados. Médicos, advogados, professores e jornalistas compuseram a maior parte do quadro da AIL. Alguns possuem destaque na composição do grupo, sendo Luiz Azeredo um destes membros. Jornalista e filho do fundador do Correio da Lavoura, o árcade atuou na promoção da instituição junto à imprensa e promoveu o grupo adjacente às demais associações. A partir desta intervenção historiográfica, o grupo tornou-se porta-voz do saber histórico e literário da região, tendo em sua narrativa a possibilidade de manutenção do prestigio dos outros dezenove membros.
Em A República Mundial das Letras, Pascale Casanova discorre como as academias compõem uma linguagem “própria” a partir da literatura. Através de uma “aristocracia artística” elas consagram o que é considerado literário e a referência para o que ainda está por vir. No caso da AIL, os membros não estabeleceram uma língua iguaçuana, mas um território literário a partir de uma tradição histórica. “As cidades onde se concentram e se acumulam os recursos literários tornaram-se lugares em que se encarna a crença, em outras palavras, uma espécie de instituição de crédito, ‘bancos centrais específicos’.” (CASANOVA, 2002, p. 40). Portanto, o ambiente acadêmico representava uma realidade interna muito mais sofisticada do que a proposta por seus congregados. O discurso em torno da cultura e da língua encobriu um conjunto de tensões mais complexo. Defendida desde a fundação, a neutralidade entre política e letras pouco se deu, uma vez que a AIL cumpriu sua intervenção na narrativa histórica da cidade. A imagem de “imparcialidade” artística deixou de ser saudosismo quando uma determinada literatura produzida sobre um lugar enaltece a associação que a fez e seus integrantes como agentes propulsores da história local. Em escala estadual, a Arcádia Iguaçuana de Letras se enquadra em um movimento de escrita da história fluminense mais amplo e anterior à AIL.
De acordo com Rui Aniceto Fernandes, a capital fluminense concentrou diversas instituições literárias6 desde a primeira metade do século XX.
Em Historiografia e Identidade Fluminense, Aniceto aponta que, nos anos 1920, “construíram-se discursos narrativos e imagéticos sobre o Rio de Janeiro que nos levam alterações na forma como tais pensadores se relacionavam com o passado, e que passam a conferir um lugar de destaque à história em suas reflexões.” (FERNANDES, 2009, pp. 57-58). Os grupos fizeram intervenções historiográficas durante a interventoria de Amaral Peixoto e posteriormente, quando eleito governador do estado. Apresentar sua administração atrelada ao desenvolvimento do estado, especialmente aos setores tradicionais e agrícola, se mostrou um esforço desde o início de sua gestão.
Por isso, para promover estes ideais, o amaralistas investiram em educação, monumentos, obras, escritores e instituições literárias.
Durante o segundo governo de Amaral Peixoto (1951-1954), outros departamentos como Diretório Nacional de Geografia do Estado do Rio de Janeiro (DRGERJ) e, principalmente, a Faculdade Fluminense de Filosofia se destacaram na defesa das tradições regionais, pois o “reconhecimento de seus cursos ocorreu em 1951 e 1954. O papel da instituição formadora dos professores e bacharéis, que atuavam nas escolas e […] instituições, era ressaltado […] pela valorização da cultura fluminense.” (IBIDEM, p. 61). No nível local, grupos como a Arcádia fizeram parte desta estratégia de manutenção da política clientelista de personagens como Getúlio de Moura, por exemplo. Logo, a rede de sociabilidade que uniu politicamente os árcades se deu por motivações mais complexas que “preservar os valores típicos”. No caso iguaçuano, a escolha do próprio nome simboliza parte deste projeto. O termo Arcádia faz referência a uma região mítica da Grécia Antiga que elege o campo e seus valores como cerne. A terminologia justifica reunir membros de uma elite agrária, uma vez que ela é parte desta rede clientelista que a faz administradora do município e “condutora” da história local. A fala da AIL dá certa continuidade ao discurso memorialístico dos anos 1930 e de demais instituições fluminenses sobre o tempo “áureo” do qual pertenceram.
Baseados em livros memorais produzidos nos anos 1930, mas principalmente em suas recordações, os árcades narraram o “próspero” passa-
do. Neste sentido, a proposta de Joel Candau de uma memória viabilizadora do passado pôde, na prática, se tornar o que se denomina memória cultural. Esse conceito é mobilizado por Aleida Assmann para afirmar que “a memória implica uma memória suportada em mídias que é protegida por portadores materiais como monumentos, memoriais, museus e arquivos.” (ASSMANN, 2011, p. 19). Ao tornar a memória um conceito cultural em Espaços da Recordação, Assmann amplia a proposta de Joel Candau.
De acordo com a autora “enquanto os processos de recordação ocorrem espontaneamente no indivíduo e seguem regras gerais dos mecanismos psíquicos, no nível coletivo e institucional esses processos são guiados por uma política específica de recordação e esquecimento” (IBIDEM, p. 19). Portanto, a reverencia a vultos históricos, datas comemorativas locais e manifestações ditas “culturais da região” são uma auto-organização da memória cultural iguaçuana e isto não se deu sozinho. A Arcádia Iguaçuana de Letras sistematizou, a partir de uma iniciativa literária, mas também política, “o salto entre a memória individual e viva para a memória cultural e artificial” (IBIDEM, p. 19). As produções teatrais7, mostras artísticas, danças populares, sarais, conferências e cursos ao enaltecerem o ser iguaçuano o deformaram, uma vez que estas ações instrumentalizaram de forma reducionista as recordações de seus membros. Desta forma, obras como Imagens Iguaçuanas são a materialização das lembranças do árcade Ruy Afrânio Peixoto na vida pública. Será nela que nos debruçaremos no próximo ítem.
Imagens Iguaçuanas e seu lugar na memória
Seguindo a perspectiva de Aleida Assmann, podemos afirmar que: Enquanto certos tipos de memória se retraem (como a memória de aprendizagem, a formativa e, com referência a shoah, a memória experimental), outras formas ganharam claramente “importância, como as das mídias ou da política, pois o passado — do qual nos afastamos temporalmente cada vez mais — não fica completamente sob a custódia
de historiadores profissionais” (IBIDEM, p. 20).
Ruy Afrânio Peixoto, autor de Imagens Iguaçuanas, foi o representante a reivindicar o lugar desta memória iguaçuana a partir do presente em transformação. O objetivo era torna-la parte da vida cultural da cidade, com suas experiências e demandas próprias. Ruy Afrânio foi membro da Arcádia, cofundador do Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu (IHGNI) e administrou seu próprio ginásio escolar, instituição privada que levou seu nome. Foi professor e escreveu dois livros enquanto esteve na AIL, Traços Biográficos de João Manoel Pereira da Silva (1962) e Imagens Iguaçuanas (1960).
Imagens Iguaçuanas possui uma estrutura peculiar e reúne o que Assmann denomina por atos culturais da recordação, ou seja, está para além da memória como uma sistematização topológica do conhecimento. Ao analisarmos a composição de 73 páginas, podemos dividi-la em três partes, sendo a primeira sobre a fundação do município e sua história nos séculos XVIII e XIX, desde a fundação da vila de Iguaçu à inauguração da Estrada de Ferro Dom Pedro II, atual Central do Brasil. Por página, o autor pode descrever a genealogia de famílias, a festa do padroeiro Santo Antônio e fazendeiros da região dos séculos acima citados. No segundo momento Ruy Afrânio constrói um pequeno histórico sobre a sede do município, seus distritos e apresenta características sobres as partes deste todo. Por fim, são elencados “ilustres” iguaçuanos do século XIX. São eles: Bernardino José de Souza Melo Júnior, Francisco Luiz Soares de Souza Melo, Francisco Pinto Duarte (o Barão de Tinguá), João Manoel de Pereira da Silva e Joaquim Eloi dos Santos Andrade, todos os vultos históricos do município. Os fatos eleitos pelo o autor são, antes de um ato de recordação, a memória onde estão uma forma de armazenamento, por isso Assamann aponta que armazenamento é um procedimento e recordação um processo. Este último é constituído por escolhas e experiências pessoais nas quais Ruy Afrânio Peixoto faz uso. As referências são parte de um conteúdo repetido, memorizado, que pode facilmente ser encontrado em outros discursos e livros produzidos na mesma época ou não. No entanto, as recordações são ministradas de maneira distinta “procede basicamente de forma reconstrutiva: sempre começa do presente e avança inevitavelmente para um deslocamento, […] uma distorção, uma revaloração […] do que foi lembrado até o momento da sua recuperação.” (IBIDEM, pp. 33-34).
Portanto, o tempo é parte fundamental deste ato que é recordar. A proposta da AIL é resultado das demandas de seu presente, ou seja, de uma cidade rural com cerne urbano em vias de expansão da malha metropolitana. Escrever um tipo de literatura que exaltasse figuras do século XIX e uma cronologia segundo a criação da vila de Iguaçu compôs um arranjo de esquecimentos ativado pelo recordar de uma memória em vias de ser ativada. No caso iguaçuano, a narrativa histórica fez este movimento tornar o vivido uma memória cultural, memorialística.
Ponderar o que os homens consideram por passado e o lugar ocupado por ele em uma sociedade tornou-se chave de compreensão para de-
terminados processos. Não era comum que os árcades produzissem textos com rigores metodológicos ou sistematizando questões características do historiador. Não bastava organizar a narrativa em fatos. Descrever eventos de forma contínua e ordenada não dimensionava toda notoriedade de um indivíduo. Esse movimento fica evidente no capítulo O trem que parte, quando o autor define a passagem do tempo através da estação ferroviária e “recria” a Nova Iguaçu antes e depois do progresso. A ferrovia é o ponto de partida e chegada da transformação:
Longe, ainda longe, curva de Mesquita, já se ouvia o apitar do trem. Movimentava-se a Estação. Era a “Fumaça” que ia chegar, como já anunciara o sinozinho do Agente. Garotos, a postos, preparavam seus sacos de laranjas, suas cestinhas de biscoitos, doces de leite e roletes de cana.
As janelas abriam-se curiosas e das chácaras de laranjeiras que se debruçavam até a linha férrea, saíam espectadores ansiosos. “O trem ia chegar…” […] O trem esperava… o ar se impregnava de carvão e a máquina, exalando um ofegante suspiro parava […]. Começava o movimento.
[…] Com um plangente apito, que se perdia no eco das serras, partia, vagarosamente o trem. E o tempo passou… […] Centenas de pessoas, acotovelando-se, comprimindo-se, esperam, na extensa faixa de cimento. O trem que não tarda. E êle chega, o elétrico, rápido, como rápido estanca sua imensidão metálica […]. A um só tempo, mais de uma dezena de portas se abre para uma avalanche humana que se choca com outra comprimida […]. São fisionomias suarentas, cansadas, esgotadas do trabalho […] [GRIFOS NOSSOS] (PEIXOTO, 1960, p. 3).
O texto apresenta duas cidades: uma antes e depois do trem elétrico. A primeira situada nos anos 1930, próspera e movida pela citricultura. A das décadas de 1950 e 1960, tomada pelo “progresso” e pessoas “esgotadas do trabalho”. A partir da transição de temporalidade apresentada, algumas das transformações em curso na cidade são exemplificadas, bem como os recursos empregados para isto. A narrativa histórica nasce da constatação de que não há memória espontânea, isto é, para que a mesma se torne uma memória cultural são necessárias extensões físicas (arquivos, monumentos, obras), uma vez que a memória é mobilizada pela história. A compreensão deste fenômeno enquanto sentimento de desaparecimento dos significados do presente e imprecisões do futuro foi explorado por Pierre Nora em Entre memória e história, a problemática dos lugares (1993).
Nora afirma que a memória “combina-se à preocupação com o exato significado do presente e com a incerteza do futuro para dar ao mais modesto dos vestígios […] dignidade […]” (NORA, 1993, p. 14). Quando o árcade materializa sob a forma de narrativa o que é possível rememorar, o mesmo define que estas recordações não estão mais em todos os lugares, mas a partir de sua individualidade e experiência. Ruy Afrânio Peixoto coloca sua subjetividade como uma interseção entre presente e passado, contudo essa equação pode se tornar ambígua, uma vez que a relação do indivíduo com seu próprio passado pode pesar no momento da construção da obra.
Cabe ao fazer historiográfico, diz Pierre Nora, que a história não seja somente história. O árcade destaca a mudança, mas não se propõe a fazer uma discussão sólida sobre a mesma. Ele reage como sujeito incapaz de lidar com o “progresso” que assola a cidade e as ambiguidades provenientes do capitalismo. Por fim, identificamos o que Nora define por jogo da memória e da história:
Na mistura, é a memória que dita e a história que escreve e por isso que dois domínios merecem que nos detenhamos, os acontecimentos e os livros de história, porque não sendo mixtos de memória e história, mas os instrumentos, por excelência, da memória em história, permitem delimitar nitidamente o domínio. (IBIDEM, p. 24).
Por fim, ao analisar esse tipo de produção, há que se considerar o objetivo de quem escreve e sobre o que está sendo redigido. As relações entre memória e historiografia não são uniformes, uma vez que a memória se torna uma narrativa a partir de uma intervenção intelectual, na qual se ordena cronologicamente, narra-se causas e consequências e convence que o passado é como se conta. Por vezes este tipo de produção local, dita memorialista, é julgada enquanto uma construção que funde sujeito e fato, mas esquece-se o saber cientificamente estabelecido, produto de mecanismo de persuasão capazes de tornar uma determinada historiografia verdadeira.
Em Memória, História e Historiografia (2001), Fernando Catroga (2001, p. 40) evidencia esta relação e alerta que a historiografia “também nasceu como um meio de combate contra o esquecimento, ou melhor, como uma nova ars memoriae exigida pela decadência da transmissão oral e imposta pela crescente afirmação da racionalidade e da escrita”. Portanto, a literatura produzida pela Arcádia é fruto do seu tempo e, como a historiografia acadêmica, uma resposta para o não esquecimento de uma recordação. Escrever sobre Nova Iguaçu evidencia silenciamentos e ditos que podem evidenciar um espaço próprio para estes acadêmicos.
Ao fornecer credibilidade, a historiografia tradicional sacralizou figuras e fatos de forma que os argumentos históricos levassem a uma institucionalização da historiografia e de quem a produz. Isto perpetuou a ideia de quais interpretações sobre o passado poderiam ser revistas ou reproduzidas junto à memória coletiva. No entanto, ao produzir conhecimento, uma determinada memória difundiu-se e com ela a história como memória. Neste sentido, quando Ruy Afrânio Peixoto escreve sobre o município, os habitantes e os usos atribuídos ao trem, pode a escrita “cair-se no encobrimento da sobredeterminação cívica e memorial em que ambas se inscrevem. Em síntese: a historiografia […] também gera a ‘fabricação’ de memórias, pois contribui, […] para o apagamento ou secundarização de memórias anteriores.” (IBIDEM, p. 57).
Há que se concluir sobre dois pontos, o primeiro de que a escrita da história iguaçuana cumpre um exercício de refutamento ou não de episódios sobre a cidade, movimento similar dentro da historiografia. O segundo está no significado de que esta narrativa não é menor, mas opera de forma diferente. Ela possui uma demanda do presente, uma cronologia e atores frutos de uma memória histórica construída. Por fim, detectamos uma tensão entre memória, esquecimento e expectativa, que para Catroga é fruto das diferentes formas de intermediar a produção sobre o tempo e o espaço por um ou mais sujeitos.
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