central do brasil trem estação

Meio amargo

Era sexta-feira e um minuto. Ele veio junto com a chuva que era esperada, bela, ácida e negra de fuligem. Não bateu à porta e sequer avisou da chegada. Quando decidiu sinalizar que estava a caminho, todos já estavam preparados para dormir. Não houve tempo de preparar a casa, varrer o chão, sacudir os tapetes nem guardar a louça.

Nessa hora, pela janela, só se via a escuridão da melodia que saudava a madrugada carrancuda e molhada. Na boca da noite, não havia sorrisos nem lamento. Da gestação só restara agora a derradeira e mais aguda dor.

Há mais de dois dias virava-se de um lado a outro, sem posição, principalmente para dormir. Comia pouco e sem nenhuma vontade, até que finalmente o parir se conjugava. Ela gritava e declamava versos brancos e decassílabos. As lágrimas escorriam, pois estava sozinha, sozinha como já estava há muitos meses, mas agora a solidão gritava ainda mais alto aos seus ouvidos.

Era sexta-feira e há mais de uma hora o último trem com destino à Central do Brasil já havia partido. No relógio da parede úmida, os ponteiros não dançavam mais no ritmo, e agora, ela sorria e o choro da cria podia ser ouvido através do muro da estação de Olinda.

Os dois nasceram ao mesmo tempo. O texto escrito com letras trêmulas e em garranchos e o menino franzino, de olhar sombrio e turvo como a chuva que caía. Era sexta-feira, e no sábado ele já erguia o pescoço e levantava o dorso com a força e a destreza dos bebês de mais idade. Seu olhar era penetrante e frio. Sua mãe continuava sozinha. O texto estava esquecido em uma gaveta qualquer.

O menino crescia calado e introspectivo entre a Wenceslau Brás e a Salgado Filho, como encarnação da solidão da mãe. Odiava abraços e chorava ao ouvir o barulho dos trens. Um dia, ainda na tenra idade, acessou a estação por baixo da roleta. Aguardou silencioso o trem parar na plataforma da estação e invadiu pela janela a cabine do maquinista. A mãe o aguardava com o lanche preparado. Ele sorria, batendo insistentemente a cabeça do maquinista contra o painel. O funcionamento do ramal foi interrompido por três horas.

Chegou então atrasado para o lanche. A mãe agradecia todos os dias pela benção da maternidade. Ele, despretensiosamente segurava a caneca de achocolatado com as mãozinhas sujas de sangue. A mãe não percebeu nada além de seus belos olhos negros de menino.

Tempos depois, às sextas-feiras, ele continua caminhando pelos trilhos, entre Olinda e Ricardo de Albuquerque, no ritmo de relógio descompassado que regeu o seu nascimento. Sua boa mãe ainda prepara seu lanche, sem perceber que com seu olhar sombrio, ele come com sangue nas mãos.