O trauma marcou a infância, trazia a ferida aberta, como uma fera mordendo as entranhas, engolindo um pouco de si a cada dia; pois aquela marca de refrigerante havia acabado com os seus sonhos de super-herói…
Foi nu de tudo que abriu os olhos no domingo, fadado à preguiça do final de semana, vindo ao mundo numa casa de cômodo, nas fronteiras da fome.. Cresceu vendo a merda jogada no vaso boiando no quintal, bebendo água com geosmina, mas sofria calado, quieto, acomodado diante do suplício!
Submetia-se à desgraça, contudo garantia o vício, jamais ficaria sem o refresco industrial. Estava disposto a qualquer sacrifício, para manter a marca do refrigerante em evidência no mercado!
Assumiu a dependência, fez apologia, comprou um tênis com o nome do refrigerante, vestiu uma camisa estampando o desenho da iguaria, Resumia no estilo a mania de garoto propaganda.
Tratou de ingressar na informalidade, como camelô, vendia latas de refrigerante, pintava o sete para ganhar dinheiro, porque a recompensa vinha com o acesso ao produto.. O salutar sabor de açúcar, quase um orgasmo, só o som do nome enchia a boca d’agua; era o doce amargo, o parceiro do diabetes, a caspa do capeta, o responsável por diferentes malefícios ao organismo..
Um comportamento compreensível, na trajetória carente de gente pobre, pois todo mundo tem direito a um vício; o problema era o exagero, o guloso consumia cinco litros por dia. As doses aumentaram, abandonou o hábito de ingerir água, matava a sede com a fórmula mágica da porcaria.
Moral da história meteu o pé na jaca, esqueceu a moral, multiplicou os efeitos colaterais, terminou na UTI, transbordando glicose… Num dos delírios do pâncreas, na estada no hospital, retornou ao momento exato do trauma na infância; de quando os pais foram assassinados, dentro de casa, por uma rajada de fuzil, na favela do Rola Bosta.
A primeira lembrança, na memória, ficara do copo cheio de refrigerante, oferecido pela vizinha, em consolo, àquele poço sem fundo…
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