Não tem nada pior que uma doença terminal que não termina nunca. Por isso eu queria que minha mãe morresse logo. Que aquele tumor navegasse por sua corrente sanguínea e ocupasse cada geografia de seus órgãos. Só assim ela deixaria de ser o que era: nem uma presença, nem uma ausência; só aquele não-ser mórbido, nem viva nem morta, mas um objeto que demandava cuidados generosos e, egoísta crônica, não retornava afago algum.
Não retornava, nunca retornou.
Minha relação com ela nunca havia sido boa. “Vai regar as plantas”, mandava, e eu, aos oito anos, era obrigada a abandonar minhas brincadeiras para cuidar de suas arvorezinhas venenosas cultivadas na cozinha. “Regue direito, não sabe fazer nada certo”. Ela era perfeccionista. Eu pedia que me presenteasse com plantas de brinquedo, bonecas de brinquedo, comida de brinquedo, porque eu só queria brincar para a vida por enquanto. Mas ela respondia que a vida das plantas dependia de mim. Ela dizia que a vida dela própria dependia de mim.
“Não quer magoar a mamãe, quer?”.
Não, não vou te magoar jamais, mãe. Mesmo agora, aos dez anos. Inclusive desmarquei com a Carol e a Bruna, nós íamos ao cinema e depois passear no parque, mas vou ficar regando suas plantas venenosas e te fazendo companhia, afinal, tenho só dezesseis anos, que problema há em ficar em casa num sábado de verão pra uma jovem de vinte e um anos como tenho agora, nada a ver, fico mesmo, o Maurício que segure aquela vontade de me levar pra comemorar meu aniversário de vinte e seis anos num hotel na praia, comemoro aqui contigo, regando suas plantas e vendo programas de televisão aos domingos à noite, afinal, para uma mulher de trinta e cinco anos como eu, sair é até besteira. Não vou te magoar nunca, mãe.
Ao longo desses anos, chorei algumas vezes, sobretudo quando Caróis, Maurícios e Brunas acabaram me deixando pra trás, tudo bem, é a vida, mas confesso: meu principal choro foi quando minha mãe me chamou no quarto onde estava internada esperando pra morrer de sua doença terminal que não terminava nunca.
“Quero ser cremada, filha”.
A princípio, pensei: enfim uma atitude generosa, que alívio, ao menos não terá aquela choradeira da hora do sepultamento. Mas logo ela completou:
“Creme meu corpo e jogue minhas cinzas nas plantas da cozinha”.
A morte serve ao descanso, tanto de quem vai, quanto de quem fica. Mas o que mamãe me pediu foi para ser imortal. Quando joguei suas cinzas nas plantas, senti como se ela tivesse renascendo naquela terra; eu, filha, parindo a própria mãe e fazendo-a crescer, alimentando-a com água e luz do sol, direitinho, como sempre fiz. (Aliás, com muito mais esmero, porque uma coisa é regar plantas venenosas, outra coisa é regar sua mãe.)
Minha casa virou uma estufa gigante. Cada vaso e jarro tem um pouco de minha progenitora e meus dias giram em torno disso. Regar, pôr no sol, podar, cuidar. Ainda bem que hoje eu tenho ajuda. Aliás, rega a vovó. Rega a vovó, filha, senão vou ficar magoada com você.
Não quer magoar a mamãe. Quer?
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