Às margens do rio Iguassu há um lugar ermo e solitário, respeitado por todos os habitantes daquele país. É um bosque formado de melancólicas e tristonhas árvores que se assemelham aos ciprestes europeus, conservando aquele mesmo aspecto misterioso, parecendo caracterizado por aquela mesma profunda e inconsolável dor. Uma roseira, plantada talvez pela desesperação, ergue-se por entre outras árvores: dir-se-ia um altar ou um túmulo no meio de um templo. Um pálido e tristonho brilho reflete a roseira; em vão tentam os ventos e as chuvas abatê-la: algum gênio, sem dúvida, a sustenta, algum gênio a rega com suas lágrimas. As tenras aves, esvoaçando a roda, entoam hinos tão doces, gorjeiam cânticos tão belos, como os sons de uma harpa arrancados pelas mimosas mãos de uma virgem – tão melancólicos como vozes do órgão de uma igreja. As velhas de Iguassu, como pessoas mais instruídas na antiguidade de um país, fizeram deste bosque o teatro de uma lenda. Aquela roseira, dizem elas, tem as suas raízes na cinza virginal de uma donzela, arrancada deste mundo por uma paixão de fogo que a devorara… ela se chamava Luísa… e seu nome parecia ainda ecoar sobre a roseira, e as aves, que ali vêm chorar a perda da infeliz, também o aprenderam a dizer.
É este um dos lugares dos mais curiosos da Vila de Iguassu: é o monumento gótico e antigo que com orgulho os habitantes mostram aos viajantes; e a sua média idade, onde colocam diversas legendas, diferentes histórias e romances. Com respeito nós visitamos esse lugar, quando a infância ainda nos embalava, quando nossas vistas, circunscritas no círculo dos poucos anos, mantinham-se somente nos prazeres e gozos do presente; quando o futuro ainda nos parecia uma continuada série de delícias, que jamais deveriam acabar…. E quando nos recolhíamos pela casa paterna, que em tão pouco tempo bem mudada ficou, uma tia nossa, que conosco morava, nos deleitava contando a história da bela Luísa da roseira, que tencionamos hoje publicar. Oh, belos tempos da infância, como ligeiros passastes!
Em uma rústica cabana, distante duas léguas da vila de Iguassu, vivia pobre, porém feliz, o velho Fernando da Cruz, com sua filha de nome Luísa. Era a mais bela, a mais formosa donzela iguassuense; longos e negros cabelos cabiam-lhe sobre as duas espáduas, que rivalizavam em alvura; dois olhos doces e celestes coroavam sua fronte, e, como brilhantes estrelas, giravam sob suas formosas pestanas; tinha uns lábios purpurinos, e uns dentes que mais brilhavam do que o diamante; perfeito modelo de graças ou de encantos, que não temia de apresentar-se ao lado das Yenus de Canova e do Medicis, que formam o ornamento de Florença. Suas feições eram de tão sublime espera, de tão angélicas formas, que não poderiam passar por coisas mortas. Nunca os mais célebres pintores puderam realizar em suas telas um tão suave, tão sublime tipo de ideal; nem os sonhos dos mais aclamados poetas, dos Byrons, dos Scots, e Shakspears, igualam tão rara beleza.
E a donzela era devorada por um amor sem esperança, um primeiro amor que exalta e endoidece…. Um jovem de vinte e quatro anos, por nome Carlos, caracterizado por todos os vícios, ainda que descendente de uma honrada família, era o objeto dos desejos de Luísa. Não sabemos achar a razão desse fenômeno: a mais virtuosa moça amar o mais perverso dos homens! Mas, tal é o fato; ele também a amava, e o seu amor lhe fazia bem, porque o impedia às vezes de cometer alguma ação má que tencionasse…
Estava neste tempo D. João VI no Rio de Janeiro: o neto dos Afonsos, deixando a metrópole do reino, fugindo à fúria do leão do século décimo nono, estremecia à menor notícia, à mais insignificante nova que da Europa viesse: educado no meio de uma corte corrompida e imoral, entregue cedo aos caprichos da mocidade e do mando, D. João VI, ainda que talvez possuindo um excelente coração, não merecia suceder a tão gloriosos monarcas, assentar-se em um antigo trono, outrora de tanto esplendor, de tanto poderio.
Carlos era, como já dissemos, um extravagante c dissipado mancebo: os desgostos, que ele a seu pai dera, conduzirão o infeliz velho à sepultura…. O filho, em vez de se corrigir com esta desgraça, causada por seu mau comportamento, continuou a trilhar sempre a estrada dos vícios, e até dos crimes…. A justiça perseguia-o por fim, e ele, para escapar às suas investigações, embarcou em um navio português que seguia viagem para a Índia…
E a infeliz amante, longe daquele que mal grado seu ela tão apaixonadamente ornava, murchava como flor aos ardentes raios do sol. Pouco a pouco desaparecia das suas faces aquela rósea cor que tão bela a fazia; pouco a pouco sobre seus olhos que sempre úmidos caíam, imprimiam-se dois lívidos e esbranquiçados círculos, que deportavam internos sofrimentos…
E o velho Fernando com ela chorava, e de quando em quando destilava-lhe na alma algumas gotas de consolação, esforçando-se em extirpar-lhe do coração o mortal veneno
que a carcomia… um primeiro amor pode-se acaso arrancar com insinuações, conselhos, ou força? Ignorava o velho que essa paixão, tão entranhada em um jovem e brasileiro coração, continuamente perseguiria sua vítima, tanto que por fim a conduzisse até a sepultura.
Entretanto eram já passados três anos, e nem uma notícia tinham eles recebido de Carlos; ignoravam completamente o seu destino, e isto ainda mais os magoava. Um irmão de Carlos, de nome Alberto, jovem bem feio, dotado de sentimentos de honra e de probidade, e que também já há muito tempo adorava Luísa, pede neste momento sua mão ao velho Fernando, que aceita a oferta, sob a condição do consentimento de sua filha.
Seis meses se passaram ainda, no meio das súplicas do pai e do amante, e das negativas da filha. Entretanto a infeliz, recebendo a infausta notícia da morte de Carlos, para obedecer a seu pai, ainda que não amasse Alberto, consente nas núpcias.
A igreja de N. S. da Piedade do Iguassú está situada no meio de um triste e feio campo entrecortado por valas e correntes de água, exalando infectos vapores, por isso que nele se enterram os mortos. Meia dúzia de velhas e pequenas casas de sapê, entre as quais brilha a do vigário, colocada defronte à porta da igreja com uma espécie de sótão, forma a grande praça da Matriz, distando um quarto de légua pouco mais ou menos da nova vila. Na igreja celebraram- se, com prazer e contentamento de todos, as núpcias de Luísa e de Alberto. Depois do sagrado ministério, um excelente banquete, como pede o uso, adubado por perus e leitões assados, segundo a moda das roças, alegra os convidados, que eram as principais personagens do país, entre as quais brilha a sábia e gorda cabeça do vigário, o magro esqueleto do sacristão, a face comprida do boticário, e a elegante e amarela fisionomia do comissário de Polícia. Todos se entregam às delícias da mesa, todos se precipitam sobre os copos, todos zombam, riem-se. Só Luísa, a infeliz Luísa, chorava.
Sentiu a donzela um pequeno incômodo e pediu licença para retirar-se para seu quarto, tanto para alívio seu, como também para com sua presença não perturbar a alegria que em todos os semblantes se divisava: mas ai! Enquanto os gritos de prazer, as gargalhadas ressoavam na sala do banquete, ela se deslizava em lágrimas no seu leito, que coberto de flores e de fitas pressagiava uma noite de delícias….
De repente abre-se a janela, que estava cerrada; um homem salta dentro do quarto; esse homem se aproxima do leito, e quando o avista Luísa, e quer gritar, já ele lhe embargou a voz com esta palavra:
— Sou Carlos.
— Carlos! Oh ? Meu Deus! Pois tu, que eu julgava morto!
— Sim, eu mesmo, eu que agora te venho pedir contas daquele amor que me prometestes, me jurastes; eu Carlos, teu antigo noivo, teu único marido!
Recitava o vigário nesse tempo uma longa e fastidiosa oração de graças em honra de Baco; seus olhos pareciam desfazer-se em alegria: suas faces um pouco mais inchadas exprimiam os seus internos pensamentos…. E os circunstantes exultavam também de prazer, vendo a mais interessante personagem do país tão alegres e tão eletrizados….
Mas o velho Fernando e Alberto estavam inquietos por Luísa, e ainda que nada suspeitassem, aquela súbita retirada para o quarto lhes dava algum cuidado. O velho deixa a sala e vai ao quarto da filha… mas ah! Em vão a procura, onde está ela? Corre a casa toda, pergunta, indaga, mas nem uma resposta tem, ninguém a viu mais…. Ao espírito do esposo e do pai mil ideias sobem, mil diversos pensamentos os assaltam, e só desgraças lhes ocorrem…
Dá-se parte a todos do sucedido, uns espantam-se, outros estão ocupados em carregar em uma rede o sacristão e o boticário, que tinham perdido os sentidos, e outros se lançam em todos os caminhos a procurar a donzela…
Era já noite, e o que seria feito dela? A desordem, o motim, a desesperação, as lágrimas, os gemidos crescem. A lua, melancolicamente, enfiava seus pálidos raios por entre as frestas da cabana, as estreitas murmurando ressumbravam no ar, e esclareciam a terra; a noite estava bela, e uma fresca viração soprava brandamente as folhas das árvores. O ancião, cansado e abatido, cai um delírio, e o esposo, que algumas horas antes antolhava
uma bela noite, o pensamento marcava o tempo, e que em sonhos já sorvia o perfume dos prazeres que devia gozar ao lado do objeto amado, perde-se no meio dos bosques, soluçando e trêmulo sem sabor onde ia, e o que devia fazer…
Sem sentir se acha às margens do rio, e sem sentir se precipita no seu leito: a umidade da água o faz sair do estado desesperado em que se acha, e reconhecer a sua posição; um gemido moribundo o faz estremecer de repente, e um objeto branco, que se balança sobre as águas, atrai a sua curiosidade: sem poder respirar, só lança sobre esse objeto, arranca-o à força das águas, e o descansa sobre a margem. Qual foi o grão de sua desesperação, quando reconheceu no objeto que havia salvado: um cadáver, e neste cadáver a sua infeliz esposa…
Como sucedeu este caso, ignora-se ainda: mas nossa tia nos afirmou, que Luísa, desesperada por haver faltado à sua promessa, ao seu juramento, com o remorso que lhe pesava sobre a consciência, de não poder amar o seu esposo, se tinha lançado ao rio de mútuo concerto com Carlos, e se afogara. O cadáver de Carlos encontrou-se também no rio alguns dias depois.
Fernando e Alberto pouco tempo sobreviveram à bela e desgraçada Luísa. No lugar em que se depositou o cadáver da donzela nasceram as árvores, e a roseira, de que acima falamos. À meia noite, afirma a gente do país, costumam aparecer quatro almas do outro mundo naquele sombrio e misterioso bosque, ouvem-se gemidos e ais, e por isso ninguém se atreve a passar a essas horas por aquele lugar.
Pereira da Silva (João Manuel Pereira da Silva), político, romancista, historiador, crítico literário, biógrafo, poeta e tradutor, nasceu em Iguaçu, atual Nova Iguaçu, RJ, em 30 de agosto de 1817, e faleceu em Paris, França, em 14 de junho de 1898. É o fundador da cadeira n. 34 da Academia Brasileira de Letras, que tem como patrono Sousa Caldas. Em 1834 foi estudar Direito em Paris, formando-se em 1838. Lá participou das atividades do grupo Niterói, escrevendo para o segundo número um artigo importante, o primeiro em que um brasileiro expunha certas diretrizes da crítica romântica. De volta à pátria, foi advogado e político. Pelo Partido Conservador elegeu-se deputado provincial, depois geral, quase sem interrupção, de 1840 a 1888, quando entrou para o Senado. Era titular do Conselho do Império. Estreou como ficcionista, em 1838, com o romance Uma paixão de artista, ao qual se seguiram as novelas históricas O aniversário de D. Miguel em 1828, em 1839, e Jerônimo Corte Real, em 1840. Em história e crítica literária publicou notadamente os dois volumes do Parnaso brasileiro, o primeiro em 1843 e o segundo em 1848, boa antologia com um longo ensaio sobre a nossa literatura; e ainda o Plutarco brasileiro e Varões ilustres do Brasil durante os tempos coloniais, ambos também em dois volumes. Quase todas as biografias são de intelectuais, retomando em grande parte, sem contribuição pessoal a mais, o trabalho de biógrafos como Januário da Cunha Barbosa, Varnhagen e outros. Como historiador, a sua obra principal é a História da fundação do Império do Brasil, em sete volumes, publicados entre 1864 e 1868, seguida do Segundo período do Reinado de D. Pedro I no Brasil, em 1871, e da História do Brasil de 1831 a 1840, em 1879. Além dos já citados, vários outros livros escreveu e ainda pouco antes de falecer, em Paris, aos 81 anos, havia publicado Memórias do meu tempo. Muitos outros trabalhos deixou, quase todos esparsos, o que mostra a sua produtividade.
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