Cidade-perfume. Joel lembrou desse antigo título de Nova Iguaçu, uma referência aos tempos dos laranjais. Para ele, porém, a história do município tinha outros odores: no início, o cheiro de sangue que jorrava da crueldade dos castigos corporais, na época da escravidão; depois, o azedo do suor daqueles que queimavam sob o sol colhendo as laranjas e carregando tudo, caixas e caixas, muitas vezes em troca de um prato de comida e um teto sob o qual repousar; hoje em dia, a mistura de perfumes, ou da falta deles, que lhe cercava já na madrugada da estação de Austin e que só se intensificava na hora e meia de gente espremida até a Central do Brasil.
Joel sempre se sentiu diferente por essa mania incômoda de pensar. No transporte, no trabalho, nos bancos escolares. Saía às quatro e meia da manhã de casa. Pegava cedo no trampo: era auxiliar de serviços gerais, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Voltava para seu território, estudava a noite toda. Sem transporte para perto de sua casa, naquele horário, trilhava diariamente, por mais de meia hora, uma caminhada de passos rápidos, por caminhos esburacados, com muitas ruas sem iluminação.
Pensava em toda a riqueza produzida e consumida, quase nunca pelas mesmas pessoas. Lembrava de seu avô, Sebastião, contando que, na juventude, trabalhou no asfaltamento de muitas das ruas do centro de Nova Iguaçu. Ponderava que as placas que identificavam aqueles logradouros jamais homenageavam pessoas como “Seu Tião”, mas ostentavam sempre os nomes de coronéis, comendadores, políticos, aquela gente para quem as coisas todas eram feitas, e não por quem as coisas eram feitas.
Joel sempre foi daquele jeito, mas, nos últimos tempos, a sua mente fervilhava ainda mais, como se as horas fossem mais breves, mais urgentes… Por isso, tinha mais pressa. Também tinha a ocasião oportuna, porque, em seu itinerário feito a pé, atravessava muitos logradouros já silenciados pela hora avançada e, sem o barulho de fora, o seu barulho de dentro podia berrar aquele grito mudo, fazendo seu cérebro quase explodir.
Dessa vez, porém, estava sendo diferente. Conforme se aproximava de sua casa, aumentava o barulho de sirene, surgia a luz do giroscópio e, sem demora, um barulho de tiros. Logo, pôde ouvir uma conversa: “Nicholas, por aqui, os vagabundos não podem estar longe”.
Ao dobrar a esquina, se deparou com dois policiais e parou, ou melhor dizendo, paralisou. Seu primo, estudante como ele, havia sido covardemente assassinado e seu homicídio nunca se tornara processo, havia sido arquivado como auto de resistência.
Então o policial mais velho se dirigiu a Joel e falou: “João Negão, te pegamos”. Joel tentou argumentar que não era o tal João, mas as palavras, que sempre lhe acudiram generosas, estavam todas embaralhadas, entaladas em sua garganta, teimavam em não sair. O outro policial, antes chamado de Nicholas, ainda gracejou: “no retrato falado tu não era tão bonito, mas na hora do começo e do fim, todo mundo fica feio. Todo mundo nasce com cara de joelho e morre com cara de presunto”.
O ar gelou a sua volta. O sangue de seus antepassados, que agora corria por suas veias, começou a se esvair. Seus pensamentos silenciaram. E o último perfume que Joel sentiu adentrou derradeiro em suas narinas, acompanhado do frio beijo da morte.
Que beleza de conto. Parabéns!
— A dura realidade das periferias do nosso país!!… Parabéns! Muito bom!!…
Grande Medina. Obrigado querido.