Eu vi. Contaram-me já muitas histórias parecidas, principalmente na infância, mas essa meus olhos presenciaram. Ao menos em parte, ao menos aquilo que foi possível saber e que a bênção da verossimilhança foi capaz de ratificar.
Ele era um morador de rua, já conhecido em Nilópolis e Mesquita, como tantos que a ele se uniram nos últimos tempos. Não aceitava comida de passantes que queriam volta e meia oferecer alguma ajuda. Eu pensava que essa postura poderia ter sido motivada por alguma maldade sofrida. A vida nas ruas não é nada fácil e exige coragem.
Reparei então que esse corajoso andarilho começou a “montar acampamento” próximo ao muro da estação de Edson Passos. Reparei também que entre suas coisas estava uma boneca, muito suja e que ele vestia de preto com uma capa comprida nos dias chuvosos. Eu observava da janela do ônibus. A boneca, estática e branca, observava a mim e a rua em silêncio.
Algumas vezes, aparecia pendurada num galho da árvore mais próxima, enquanto o amontoado de sacos plásticos e outras velharias aguardavam pela calçada. Todos ouvindo a melodia dos ônibus que passavam apressados, enquanto o homem divagava ou simplesmente dormia.
Foi então que me contaram que o vendedor de churrasquinhos, conhecido de vista e de boné, com sua pequena churrasqueira colocada religiosamente de quarta a domingo na praça de Edson Passos, ao encerrar as atividades, sempre por volta de uma e meia da manhã, não conseguia fechar as contas. Todos os dias faltava exatamente o valor correspondente a um espetinho. Isso vinha acontecendo há mais de uma semana. Ele coçava a cabeça, estressado, aturdido. As contas eram feitas corretamente e ele não comia em serviço. O suor lhe escorria pelo rosto avermelhado, até que ele, cansado, desistia de tentar entender o ocorrido.
Durante quinze dias na solidão da calçada, o mendigo não era mais visto na companhia da boneca de roupas pretas. Eu cheguei a estranhar a ausência. Ele mantinha-se calmo cuidando com diligência de seus demais objetos velhos e inúteis.
Parei na praça, no início da madrugada da última sexta-feira para comer um churrasquinho. O morador e dono das calçadas já havia se retirado para outro lugar. O dono da banca de churrascos me atendeu atônito, pálido, desesperado. Ele mesmo havia encontrado, há algumas horas, a boneca do mendigo, sem a cabeça e com seu interior lotado de carne mal passada, sentada e satisfeita, entre as flores de plástico que ornamentam os túmulos do cemitério Jardim da Saudade. Seu dono ainda recusava a comida oferecida pelos pedestres e sorria sozinho para o muro da estação.
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