talvez fosse mais pelo despertar grogue aos efeitos alucinantes dos clarões dos primeiros raios do amanhecer e de uma algazarra delirante de berros de crianças famintas do que propriamente pela dor da perda do olho esquerdo quando foram vencidos os primeiros achaques do torpor perceberia não se tratar da petizada a origem do madrigal choroso eram sim as aves marinhas agourentas e aquele guinchado ritmado vindo do grupo de andorinhões que plainavam num quase balé em rodopios rasantes e elegantes a minha volta transparecendo se tratar de um cortejo matinal ao estranho visitante circundaram-me à meia altura junto ao paredão daquela falésia e não foi coisa boa de se ver nem mesmo sequer imaginar um olho meu sendo arrancado e eu ali na confusão dos sentidos vendo a minha pupila opaca no bico de uma fragata a me olhar com um ar de glória e ela com os seus então três olhos me fitando daquele jeito zombeteiro de que ia dar ruim pra mim até que de repente ouço o ploc definitivo e observo atônito com o olho remanescente o pipocar da conjuntiva e um melado ocre a escorrer pelo bico da ave quando um outro pássaro veio tentar disputar o meu outro olho foi aí que gritei e esperneei espantando as duas iludido pelo revés de uma sentença crucial pelo mal menor em me sentir ainda vivo embora caolho sendo lógica a sensação de torpeza como se não tivesse mais o controle da minha própria vida de estar fluindo pra um novo tempo e espaço algo como ter transposto um portal dimensional e lá embaixo o atlântico se expandindo mar adentro e dimensionando a ressaca no litoral a revelar em meio à tanto desperdício de natureza bruta uma criatura claudicante tentando se erguer e se apoiando em rochas secas quase desmaiando ao tentar se levantar abruptamente e quase despencando abismo abaixo segurando-se em si mesmo pra não cair percebendo-me naquele entorpecimento cego eis que me sento em cócoras resfolegante tentando me recuperar um mínimo possível me levanto lentamente até me aprumar e restaurar algum tino em me prostrar in out até sentir o vento marinho forte e frio bater na minha carcaça quando aquilo até me ajuda a recuperar minimamente as forças sentindo uma crise involuntária de tosse e a boca seca e também um tanto de náuseas que vão aos poucos se dissipando junto ao bando de pássaros barulhentos e a medida que as ideias vão se clareando em minha cabeça dolorida bem assim como começa a clarear o dia ouço o marulhar batendo incessantemente nas pedras e até onde a visão torta possa alcançar tudo só mar e rochas a me confundir a memória enquanto ainda não atinasse sobre o que me ocorrera nem quem era ou como ou quando se dera e nada que me trouxesse uma explicação consistente ou qualquer vestígio dos fatos tonteei-me diante do precipício mais uma vez retrocedendo em rodopios à beira do penhasco e somente a natureza bruta como testemunha daquele quadro existencial de um ser anônimo e destoante do todo natural apesar da certeza de sua reles insignificância diante da plenitude impar da escarpa incólume quando aves nuas possuem mais nobreza sigo procurando explicações em meu próprio corpo tateei-me freneticamente sem atinar como e quando ali chegara me vendo num devaneio em meio a um mosaico de relembranças pilotando um barco a vela à deriva uma explosão no convés e eu como um náufrago diante aos destroços do veleiro a nadar a esmo e buscar refúgio galgando as rochas em frenética escalada até alcançar o topo do rochedo com a cabeça me doendo ao perceber o calombo na testa entretanto a me doer mais a consciência um tanto rarefeita ainda numa sensação de esquecimento do próprio tempo e das horas e dos compromissos quando por algum momento pensei na morte e em ato reflexo bem mais na vida estando ali absolutamente só e um universo a me cercar parecendo conspirar contra os meus instintos nem a ausência do olho importa mais devo então pensar como um selvagem e não me limitar às convenções de rebanho me projetar numa aventura de Crusoé reencontrar na minha própria ancestralidade a desbravadora e mutável essência tirar do infortúnio o esteio para a minha sobrevivência ser um bicho predador sim deixando de ser homem ser ave de rapina e escapar da armadilha voar se preciso for e a natureza bruta testemunha a criatura ganhando asas num voo onírico vencendo o penhasco a singrar ondas gigantescas em busca do infindo qual um super-homem a mergulhar profundamente dentro de si e neste ato desesperado parecer ser mais do que humano quem sabe se aceitar falível sendo apenas meio humano ou simplesmente deixar de ser…
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