Pedro Gerodário comia terra. Habituara-se ou se tornara viciado em comer terra e não seria agora, depois de tantos anos, que iria abandonar a geofagia por imposição de sua noiva, porta-voz de uma família que se orgulhava de ter amamentado todos os bebês com leite de cabra, de Montes Claros. Entre Deolinda e os dois ou três punhadinhos de terra por dia, já se havia decidido: ela não seria a única mulher no mundo e certamente haveria quem o aceitasse com todas as suas virtudes e defeitos, se é que comer terra é defeito…
Para justificar a si próprio o vício, costumava perder-se em longas horas de meditação sobre a frase bíblica: “memento, homo, quia puivis, es et in puverent revarleris”, procurando o sentido oculto, filosófico, cabalístico, unicistico dessa verdade.
Quando criança, foi levado ao médico. Sua mãe o surpreendera por três vezes regalando-se com pitadas de reboco da parede do quarto:
– É um ato involuntário, minha senhora – disse o médico – motivado pela necessidade orgânica de compensação da carência de sais minerais.
– E isso é grave, doutor? A madrinha dele disse que meu genro, o Dário, vai ficar com amarelão, pele e osso, só com barriga de quem vai parir
Os dois vidros de remédio, a caixa de injeção e os seis envelopes de comprimidos foram religiosamente administrados 100 que gerou Dário não complementasse a terapêutica com algumas pitadas de terra por dia no Colégio seu apelido era a terra o que de nenhuma maneira parecia ofendeu ofende esse sim e brigava quando alguém o chamava de minhoca sua mãe com a conivente resignação que caracteriza todas as mães quando se reconhecem potentes e fracassados diante da teimosia dos filhos fazia vistas grossas a compulsão que escravizavam gerodário. de uma coisa estava certa para seu consolo a previsão de sua comadre Não se realizara. o filho não ficar a amarelão. era robusto e até simpático. apenas os dentes em encardidos maiores do que o normal e algo enrugado davam um aspecto sinistro quando ria. Mas mesmo esta particularidade não se poderia relacionar com a geofagia.
também não era poker terra que gerou darão comia. e também não há comia para preencher o vazio que a fome deixa na barriga do Faminto. um pouco só menos do que coubesse na metade da unha do polegar de sua mão era o bastante para satisfazê-lo.
Um dia, atendendo a um convite do padre Vandré, não para se confessar, pois nada carregava pesando na consciência, Gerodário foi à casa paroquial para explicar o que sentia ao comer terra, qual a causa traumática de seu vício, porque nunca lutara consigo próprio para livrar-se daquele condicionamento, qual o tipo de terra preferida e qual a quantidade média diária que comia
Gerodário nunca havia pensado nessas perguntas e passou alguns minutos fazendo o cálculo, energizando na água grossa e turva de seu subconsciente à procura de respostas honestas:
– Vejam – disse risonho Padre Vandré, com lápis e caderno numa mão – três gramas por dia, admitindo que você tenha iniciado aos três anos de idade e hoje está com vinte e um, são… são… vamos ver… vinte e um menos três é igual 1919. Vezes 365 são… são… 6935 dias. 6935 vezes três é igual a 20805 gramas. É incrível, seu Gerodário: quase vinte quilos de terra… daria muito bem para fazer tijolos comuns ou 2 metros quadrados de Reboco… É incrível, Gerodário.
E Gerodário ria, feito e orgulhoso, como se me houvesse descoberto uma qualidade, recordista entre os campeões do mundo. Os dentes encardidos enormes, agora, mais pareciam um par de retroescavadeira ameaçando paredes, muro e chão.
– Vamos lá, Gerodário – animou-se o padre – vamos continuar. O que você sente, quando come terra?
– Bem, padre, é difícil explicar. A natureza e a intensidade das emoções e sensações humanas não são mensuráveis, assim como um metro ou um quilo podem determinar o tamanho de uma mesa ou o volume de um queijo. Mas, vou tentar ser o mais precioso e claro possível…
A voz tranquila e clara, o ar sereno e seguro, os gestos largos e expressivos, davam a Gerodário a dignidade de um conferencista:
– No princípio confesso que não guardei nenhum registro sobre a sensação de provar a terra. Era algo instintivo, incontrolado, como o início de uma paixão. Somente muitos anos depois numa autoanálise sincera é que descobri que amava a terra e comê-la era uma maneira de realizar uma integração total e perfeita. Coisa assim como se absorver a hóstia, na esperança e crença de que se absorve o corpo de Jesus.
Aqui, Padre Vandré interrompeu suas anotações e protestou:
– Esta comparação é absurda, meu filho. A hóstia é o pão consagrado na missa. A hóstia é pura e lembra o sacrifício do filho de Deus em repartir seu corpo para remir os pecados de seus fiéis. A terra é imunda, profana e contaminada por toda a porcaria do mundo.
– Aí é que o senhor se engana, Padre. É da terra que vem o trigo, do qual se faz a hóstia. É da terra que vem a uva que dá o vinho da missa e o conhaque que o senhor está bebendo agora. É da terra que provém todos os alimentos para homens, animais, plantas, aves e peixes. Comer a hóstia é um símbolo fundamentado na fé, comer a terra é um ato vivo fundamentado no amor e reconhecimento. Se diz que a terra é profana é porque ainda não se pensou no quanto ela nos é benéfica e indispensável. Não, padre, a terra não é profana, e nem imunda. É profanada e poluída pelo homem, isso sim.
Padre Vandré tentou ensaiar um protesto, mas Gerodário estava empolgado demais para interromper naquele momento:
– Olhe, padre, sem o valor simbólico da hóstia, sem esse ritual bárbaro dissimulado de antropofagia como vivem os judeus, os budistas, os protestantes, os ateus e os povos chamados selvagens, entretanto nenhum deles, ninguém vive sem o que produz a terra.
– Mas – ia tentar falar padre, no que Gerodário não permitiu.
– Não tem mas nem meio mas, Padre. Somos filhos ingratos da terra, que dela rasgamos o peito e o ventre para roubar-lhe ouro, joias e minérios pelos quais são cometidos tantos crimes que dão a terra para ela fazer desaparecer, e ela, bondosa e paciente como uma velha avó, não se zanga com tanta maldade e ingratidão, e, depois de tudo, Padre, depois de fornecer tudo quanto o homem precisa, ela ainda nos recebe em si com um abraço tão íntimo que nos absorve completamente. A terra tem vida padre. É um ser vivente como tudo quanto existe no universo…
O padre, desconcertado e sem argumento, esperou que Gerodário continuasse.
– Já pensou, padre, se um dia a terra resolvesse não ser mais comum e com justiça negasse seu laboratório químico para os muitos sabores dos frutos em diversos perfumes das flores? Já pensou se ela expulsasse de dentro de seus cadáveres as sujeiras do homem? Que secasse os mamilos de suas fontes? Ou não controlasse o formidável poder do seu útero magmático? Aí a humanidade iria compreender todos os seus erros e se arrependeria, quando o arrependimento já não poderia servir como lição para o futuro.
Um silêncio quase palpável desceu dos altares, invadiu de súbito a sacristia, entrou pela casa paroquial e foi espantar pardais e cigarras nos quintais vizinhos. A voz de Gerodário era quase um lamento quando voltou a falar:
– Eu amo a terra, padre, por isso sinto suas dores e a compreendo.
– Eu também a amo, também compreendo a importância da Terra para a vida do homem.
– Mas não ama o bastante para comê-la. Eu sim, como se a beijasse. Um Amor de Dois Irmãos, com respeito, carinho, ternura, sinceridade, gratidão, consciência e devoção. Veja bem, padre, diziam que eu ficaria opilado, magro como urubu, que teria tantas doenças com manual de farmácia. Agora olhe para minha saúde de touro. Sou forte como Jequitibá e sabe por quê?
Padre Vandré não sabia e nem poderia compreender. Por isso deu de ombros ignorantemente.
– Por que amo a terra e ela me ama também. Dá-me saúde, força, juventude, inteligência em troca de meu amor.
Depois daquele dia, padre Vandré já não era o mesmo de antes. Uma indisfarçada tristeza resiste a todas as suas atitudes como uma capa de remorso cobre a alma do arrependido. Em menos de um ano desde a conversa com Gerodário, envelhecera assustadoramente. Olhos fundos e opacos não davam vida e brilho ao rosto macilento, os ossos saltavam de dentro do corpo como se fossem furar a pele dos braços compridos, a barriga cresceu tanto que o forçava a fazer mais dois furos no cinto, e uma estranha cor amarelada cobria-o da cabeça aos pés. Todos os seus amigos e paroquianos cochichavam sobre a galopante enfermidade de que se alinhavam no corpo do padre Vandré, não só no corpo, como na alma, pois foi várias vezes surpreendido arrancando uma pitada de reboco da parede da igreja para, disfarçadamente, colocar na boca.
Waldick Pereira foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu, sendo presidente da instituição até seu falecimento, em 1984. Professor, historiador e arqueólogo, Waldick foi pesquisador da História do município, tendo publicado diversos livros e estudos sobre o assunto. Também foi o criador do Brasão de Armas de Nova Iguaçu.
O conto Gerodário Papa-terra foi publicado na revista Equipe (acervo: Moduan Matus)
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