Não sei quando Felipe deixou de gostar de fotos reveladas. Na época em que era um pirralho me perguntando infinitas coisas – antes dos primeiros sinais de minha doença me impedirem de responder – ele ficava entusiasmado para ir comigo à galeria Veplan buscar um novo álbum de retratos. Durante a espera pelas trinta e seis poses coloridas, Felipe olhava os peixes do laguinho da Veplan, e eu o distraía explicando que as carpas eram os únicos animais que nadavam contra a correnteza.
Quando relembrei essa história a ele, exigindo que me ajudasse a revelar fotos do meu celular, Felipe me chamou de carpa. Disse que eu estava nadando contra a correnteza digital. Eu insisti: o que fazer com as fotos que tiro? Ele disse que poria no drive. Que isso, filho? É a nuvem, mãe.
Desconfio dessa facilidade. Quando sinto saudade dos meus antepassados, pego os velhos álbuns para folheá-los. Abrir aquele monte de papel e plástico com cheiro de guardado é como visitar toda essa gente morta, que é sangue do meu sangue. Volta e meia, principalmente quando a minha doença dá sinais mais fortes, corro pros álbuns. São repetitivas as visitas? Sim, talvez sejam, mas as visitas que fazemos aos vivos também são tediosas e, afinal, não passamos os natais com as mesmas pessoas de sempre?
Felipe já me perguntou se eu não queria transformar os álbuns de família em digital pra guardar na nuvem. Jamais. Gosto de foto que dá pra pegar na mão, envolver em tecido, fechar zíper, colocar em cima do guarda-roupa. Me sinto meio guardiã da memória da minha linhagem. Afinal, se essas fotos sumirem um dia, o que será de meus pais, avós e bisavós? Já conheço tão pouco a respeito deles…
Quanto à minha mãe, conheci bem seus segredos; mas meu pai sempre foi um tanto impenetrável; do meu avô paterno só sei o nome e a profissão; dos oito bisavós que todo mundo possui, só tenho notícias de um; dos dezesseis tataravós, nada (coincidentemente, nenhuma foto deles também).
Às vezes me assusto com esses números: tenho dois, quatro, oito, dezesseis tataravós. Se o cérebro não me engana a conta é essa. Dezesseis seres humanos que viveram ali na primeira metade do século vinte, sobre os quais, cem anos depois, eu não sei nada a respeito. Se eu, que sou do sangue deles, não sei nada a respeito, imagina o resto da população? Ninguém sabe nada sobre essas dezesseis pessoas que ajudaram a me gerar. Nasceram bilhões de pessoas na segunda metade do século vinte, com o Estado de bem estar social; e morreram bilhões de pessoas na segunda metade do século vinte, com a Guerra fria, os conflitos árabes e a descolonização da África; a fila andou Táta, a fila andou bisa, desculpe vovô e vovó, foi mal pai, sorry mom, but… se vocês não fizeram gol em final de copa, não compuseram nenhum hino contra a ditadura ou não escreveram um clássico da literatura, perderam a vez. Sobrou pra vocês um túmulo comum sem direito a visitas que, só não foram de vez ainda, pelas fotos que guardo a ferro e fogo – na mais paradoxal das metáforas.
Preciso, portanto, criar materialidade da minha existência. Ainda mais pra mim, que a cada consulta descubro que a doença avança mais. E Felipe vem falar de nuvem? Nuvem é minha saúde mental, que daqui a pouco vai dissolver. Mas, espera. Será que no fundo Felipe sabe disso? E se o desejo do danado for me apagar? Felipe é preguiçoso demais para seguir sendo o guardião da linhagem. Desinteressado, e cheio de amigos desinteressados. Niilista, esperando minha morte pra ser indiferente a ela.
Quando tempo dura um luto? Semanas, meses, um ano? Se for assim, em dois anos minha voz não será mais lembrada; em cinco translações, sonhar comigo não trará medo de espíritos, mas será uma lembrança distante; meu neto saberá meu nome e que eu conhecia uma informação sobre carpas; ao meu bisneto, não haverá vestígios de uma de suas oito bisavós.
A gente não tem medo da morte, mas do aniquilamento. O aniquilamento. Aniquilamento.
Filho, na nuvem dá pra guardar quantas fotos? Filho, na nuvem se guarda também a nossa voz? Filho, a nuvem vai durar quantos anos? As carpas nadavam ao contrário no laguinho da galeria Veplan, Felipe, lembra? Filho, na nuvem dá pra guardar voz e foto? Você tem foto da galeria Veplan, Felipe? Sabia que nas nuvens as carpas voam ao contrário? Filho, aí da sua nuvem você ouve minha voz? Filho-da-puta-você, Felipe, que quer me aniquilar, desgraça. Filho, aquela nuvem lá em cima, ela me lembra um peixe, só que esqueci o nome, você lembra? Quem é você, menino bonito, que esqueci o nome? Menino bonito, você parece um príncipe do reino da galeria Veplan. Você dorme numa nuvem, menino príncipe? Muito obrigado pelo presente. Muito. Obrigado. Pelo. Presente. Menino. Príncipe. Eu adoro foto assim. Que dá pra pegar na mão.
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