O sol já ia alto! De onde estava, às escondidas, Micaela sentia sede, muita sede, e aquele riacho de águas claras parecia um teste de resistência para suas forças. E era vital para ela passar naquele teste.
Esperaria pela noite, só então sairia para beber água e, com sorte, até comer algo, mas, agora, o segredo era fazer de conta.
Fazer de conta que estava em casa; que tinha uma casa!
Fazer de conta que iria jantar aquela noite, que tomaria banho quente. Ela soluça, baixinho… Fazer de conta que era alguém, que era gente.
Um barulho alto a assusta ainda mais; ela fecha fortemente os olhos e se encolhe, como se assim fosse possível ficar invisível; um cachorro, passa muito próximo, quase a denuncia. Vozes, burburinho, e alguém fala que um pneu estourara. Ela reza, ela sofre de medo, de pavor.
As imagens da noite passada, muito vivas, muito nítidas na sua mente. A casa em chamas, os gritos do pai, da mãe, ela não entendia por que alguém odiava tanto sua família. Eles não eram a sua família de verdade, mas eram os pais que conhecera; nem eram bons pais, mais ainda sim eram os pais que tinha. Micaela olha os pés sujos, feridos de correr entre brasas, pedras, cacos de vidros… Teve sorte de ter queimado o arroz do jantar; foi devido a isso que teve de dormir ao relento, no quartinho sem teto dos fundos do quintal. E, assim, escapar do sinistro.
Micaela tinha doze anos, vivia naquela casa desde os sete. A “mãe”, Noêmia, agora falecida – Micaela faz o sinal da cruz – dizia que a sua mãe verdadeira a havia vendido para eles, mas Micaela não tinha certeza se isso era verdade. Lembrava, vagamente, de sua mãe amarrada, chorando enquanto, o “pai” Geraldo, agora também falecido, corria com ela no colo para dentro de uma van, com outras meninas… Duas dessas estavam na casa que foi incendiada, Coitadas. Elas nem moravam mais lá, Como o “Pai” costumava dizer, elas já estavam na idade de trabalhar para retribuir parte do que recebera. Micaela ainda se lembra dele lhe dizendo, em tom de ameaça, “- aproveita a boa vida! Quando completar quatorze anos irá com as outras trabalhar na casa de show Magic Noite!”. Ela dava de ombro. O que aconteceria de tão ruim neste tal lugar para conseguir ser pior? Às vezes, alguma moça voltava ao sítio para receber tratamentos médicos; era sempre a mesma senhora, já velha, que cuidava delas. Foi por esse motivo que a Malu e a Bia estavam lá naquela noite. A “Mãe” havia dito que dona Jurema viria no outro dia pela manhã, para resolver o tal problema, mas o amanhã não chegou. Ao contrário de Micaela, elas não tiveram sorte alguma.
A noite cai! Mas ela não se sente segura para deixar o esconderijo. Diferente dos outros dias, o lugar estava iluminado pelos faróis dos carros; eram muitos; vários homens que pareciam policiais… Mas, os da noite passada também pareciam.
De repente, alguém puxa a lona e as telhas que ela transformara em refúgio e grita:
– Há uma menina aqui!
Ela corre, fraca, tenta fugir o mais rápido que pode, mas as pernas a traem. Ela experimenta uma espécie de tontura, náusea, e cai. Os policiais, já muito próximos, pedem para não correr, que não iriam lhe fazer mal, mas ela não os ouve. Existe um som, um zumbido nos ouvidos que a impedem de escutar.
Ela tenta ficar de pé novamente, era uma pequena guerreira, mas, sente-se fraca, sem equilíbrio e tomba novamente. Sem mais nada a fazer ela fecha os olhos e tenta mais uma vez o velho truque do faz de conta!
E aí! Faz de conta, que não estar naquele lugar! Faz de conta que aquele lugar sumiu, faz de conta que a noite passada não aconteceu! Faz de conta que ela, a Micaela, nunca existiu!
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