Et quasi cursores, vitae lampada tradunt (e como corredores, transportam o facho da vida)

Cristaleira

A criança brincava sob a mesa e vê cair um anel composto de diamantes. A cena o hipnotiza. A criança pega o anel, e admira aquele estranho objeto que resplandece, refletindo o brilho do sol. Percebe o cristal límpido e transparente que sustenta a pedra preciosa, e que magicamente seduz o olhar da criança. Sua mãe percebe que a criança manipula o objeto que pode-lhe trazer risco, além de não entender seu valor. Explica à criança, que aquilo foi um presente de sua avó, e por isso, deveria ser guardado com cuidado. Retira o anel das mãos da criança, e o coloca numa pequena caixinha aveludada, depositando-o numa cristaleira que também pertencia à sua avó. A criança acompanha o movimento de sua mãe. A cristaleira, é outro objeto, que há tempos a seduzia. Guardava ali, naquele armário transparente, para o deleite dos olhares, pratos enfeitados e pintados, objetos decorativos. Memórias guardadas desde tempos ancestrais. Percebe que sua mãe fecha a cristaleira, com uma pequena chave de ferro com ornamentos. Com as pequenas mãos toca o vidro, como se quisesse pegar os objetos em seu interior. Para desviar sua atenção, sua mãe resolve contar a história do Pequeno Príncipe, do escritor Saint Exupéry. Dia após dia, sentado na poltrona, sua mãe desfia os capítulos do pequeno livro, onde aquele príncipe, descobre aos poucos os mistérios do mundo. Enquanto escuta a história, observa o anel, que brilha dentro da prateleira. Sua mãe conta a história, fazendo pequenas anotações escritas à lápis, que a criança em sua curiosidade, pergunta à mãe. O tempo passa rápido. A criança cresce, estuda, e se torna um adulto de responsabilidades, e desafios em sua empresa. Sua mãe já não é mais viva. Aquela antiga casa de sua avó.,, a sala com a cristaleira, e o anel, onde partilhou uma infância feliz, não mais existem. No local, há um prédio de 20 andares. Mas as histórias do Pequeno príncipe contadas por sua mãe, ecoam em suas memórias, lembranças, recordações e saudades. Certo dia caminhava no centro da cidade, e resolveu entrar num antiquário. Caminha dentro da loja obscura, e após ultrapassar uma cristaleira, interrompe o passo, pois sentiu que algo mexeu com suas lembranças. Para, volta o olhar e observa atento. A madeira escura, os desenhos e espirais daquele móvel, o faz reconhecer que aquela, era a antiga cristaleira de sua avó. Toca o móvel, como se estivesse tocando uma pele do passado. Algo o atormenta, e o inquieta. Seu olhar agora focaliza os objetos internos, como se pesquisasse as entranhas de seu passado, e lá está o anel de diamantes, cintilante, como era em sua infância. Não teve coragem de abrir a cristaleira, que mantinha a mesma chave, agora deformada por ferrugem. Aspira fundo, tentando reaver os odores da infância, mas só sente o mofo, onipresente da atualidade. Mais ao fundo da loja, mais soturno do que o restante, observa uma pilha de livros amontoados, e desorganizados. Se dirige para lá. Garimpa, um por um, examinando cada exemplar, até que surpreso descobre  a antiga capa do livro do Pequeno Príncipe, carcomida pelas traças de décadas, e envelhecidas. Folheia ansioso, e vê as anotações à lápis que sua mãe fazia naqueles tempos esquecidos. Sentou numa antiga poltrona da loja, e o folheou lentamente. Ali sentiu sua vida passar, de página em página, de capítulo em capítulo, de desenho em desenho, de frase em frase, como um videoclipe. Olhou para a cristaleira, para o anel, mas ao fim contentou-se somente em levar aquele pequeno livro antigo. Podia comprar a cristaleira, e o anel, mas abandonou-os. Chovia lá fora. Protegeu o livro como se ele fosse uma criança recém-nascida, e retirou-se curvado, misturando suas lágrimas com as da chuva torrencial do mundo.