Muito antes do galo cantar e do sol pensar em nascer, o despertador acordou Antônio, que se arrumou, tomou um café bem forte e antes de sair foi ao quarto da filha Estela se despedir com um beijo em sua testa.
No dia anterior, Estela havia chegado indignada em casa por conta do comentário de um colega da escola feito ao novo amiguinho que não havia se saído bem na prova de Matemática:
– Se você não estudar, vai ser lixeiro igual ao pai da Estela – afirmou o menino. E ela respondeu:
– Ele não é lixeiro. É gari. Uma profissão muito importante – respondeu a menina na ponta da língua.
Antônio foi dormir pensando na conversa que tivera com a filha. Sua pequena tinha mais maturidade do que muita gente grande. Estela não tinha noção da invisibilidade de sua profissão. Como se uniforme e a vassoura tivessem o poder de afastar o outro. Indiferença e preconceito na mesma moeda. A invisibilidade não podia mais ser varrida pra baixo do tapete.
A memória voltou à infância. A mãe, a avó e a tia, mulheres guerreiras insistindo para que ele se empenhasse nos estudos. Conseguia até ouvir a voz da mãe:
– Se você não estudar, vai virar lixeiro.
A verdade é que no primeiro momento, quando passou para a COMLURB, a ideia não foi muito bem aceita pela matriarca. Com o passar do tempo, ela compreendeu o equívoco e agora valorizava a profissão do filho, que agora estava fazendo faculdade de Biologia.
Mas ainda havia um longo caminho percorrido, pois viviam em uma sociedade excludente, poluente, em todos os sentidos. Os trabalhadores da limpeza urbana tinham um papel importante ao garantir um ambiente mais saudável para a população, mas ainda eram rejeitados por essa mesma população. Que ironia. A discriminação é um entulho difícil de ser removido. Mas lembrou-se de Estela e teve a certeza de que não era impossível. Antônio foi para o seu turno, na madrugada silenciosa e escura com uma promessa de um lindo céu azul.
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