Há tempos que ele caíra naquelas paragens, de paraquedas; e caiu mesmo. Era isso ou um sofrimento lento e progressivo nas mãos dos carrascos colombianos. Para aqueles a quem tanto havia colaborado e servido, serviu então só pra boi de piranha. Teria aplicado um golpe num grupo de pseudotraficantes, que era coisa bem pequena pra aquela época: algo como um dedo de um braço de uma ramificação do cartel de Medelín. Aprisionado e prestes a virar picadinho, não teve muitas escolhas nem tempo suficiente pra planejar a fuga, logo improvisara aquela façanha suicida quando sobrevoavam o alto Xingu em dia tempestuoso – tempo ideal pra voos clandestinos por dificultar o rastreamento do radar. Entretanto, o forte temporal surpreendeu o piloto não muito experiente fazendo-o pilotar a aeronave em círculos, apresentando-se a oportunidade para a sua ação sensacional. Foi durante uma turbulência. Num descuido dos vigias, conseguiu se desvencilhar das cordas – tendo sabotado o equipamento simplório do bimotor durante uns dos sobrevoos rasantes pela floresta amazônica, pois havia aprendido a lidar com mecanismos semelhantes durante o serviço militar – conseguindo se livrar dos algozes, eliminando um deles, jogando-o pra fora da aeronave e, em ato contínuo, se lançou ao ar, num salto ao vazio em direção ao outro, agarrando-se a ele com unhas e dentes; abriu o seu paraquedas… despencaram em meio às copas da vegetação nativa… Os nativos lhe deram nome e renome: Sol Escaldante; e daí por diante aderiu-se a ele como marisco em casco de navio. Quanto ao antigo, colocou uma pedra no assunto, fingindo amnésia instantânea; sobre tal assunto, desconversava. Tendo mil motivos pra esquecer o passado, assim o fez; melhor se desfez: de seus documentos e alguns vestígios de quem fora antes, restariam definitivamente enterrados sob uma enorme rocha bem no meio da floresta. Foi assim mesmo, desfez-se da identidade velha em troca de uma lenda a que foi presenteado quando despencou no meio da mata em dia de raios e trovoadas que, por pura ironia ou conspiração do destino, os céus o acudiram e aquele povo o resgatou ao avistarem aquela sua queda bisonha, acreditando se tratar de uma entidade de fogo enviada pelos deuses, pois veio precedida de relâmpagos anunciando a tempestade vindoura, coisa de bom agouro naquelas paragens aonde não se via chuva há tempos; e por todas estas circunstâncias foi tratado na tribo como uma espécie de xamã… Com isso logo ele se tornaria o cacique da tribo, seriam favas já contadas, bastava, pra tanto, um bom casamento e haveria de ser com uma moça de boa casta, quiçá da melhor das cepas, a filha única do velho pajé. Observem-na, inteira e nua, de corpo e espírito amorenados, a se banhar no igarapé: Luar Radiante!
Aquelas indígenas são mulheres robustas, rotundas, pernas roliças feitas para grandes caminhadas pela mata carregando tralhas e crianças. Possuem as genéticas assim estruturadas próprias pra serviços braçais, do cultivo ao extrativismo; foram acostumadas, por séculos, ao trabalho bruto, desenvolvendo a sua natureza rústica. Luar Radiante possuía estas características fortes. Embora desprovida de dotes físicos comuns às mulheres urbanas, expunha sem qualquer cerimônia, num corpanzil moreno nu absolutamente atarracado e liso, os seus seios mínimos, nádegas obliquas, seu torso roliço, ombros largos e pescoço curto, rosto largo e olhos amendoados quase sempre encobertos pela cabeleira negra comprida; compunha-se ali uma criatura fantasticamente esculpida, num esboço tal jamais ouvido ou avistado, de algum indigenista conhecido outrora, por fotografia ou desenho…
Sol escaldante não era exatamente o que se poderia referir a um bom modelo de homem, de… indígena; era presunçoso, preguiçoso e beberrão. Aqueles que lhe eram mais chegados, amigos de farra, atribuíam-lhe feitos fantásticos baseados bem mais em uma falsa fama de bravura e altruísmo, por umas e outras façanhas alardeadas pelo próprio, geralmente quando havia algum público por perto. E havia sim, naquela região inóspita, algumas aglomerações ocasionais por determinadas reuniões festivas na tribo, quando ocorriam ajuntamentos de gente pelos descampados das proximidades da aldeia. Havia quem o seguisse, não raros, havia, e também era um bom tanto, quem o desprezasse. Porém, quanto ao seu poder de sedução e empatia, disseram dele só coisas boas e, como naquela tribo já vinha sendo coisa corriqueira: com eles também já se percebiam os efeitos nocivos da modernidade, não se sabendo bem de onde surgiam certas futilidades nunca dantes observadas, como num determinado evento social, em que Sol Escaldante, após um sumiço de várias luas, seguindo rio acima, ao retornar das tais andanças, se ressaltaria dos outros na multidão, trajando uma reluzente roupa verde-amarela com números e inscrições estrangeiras estampadas. Trouxe consigo, além de várias vestimentas iguais, bolas, redes e um baú de novos conceitos, regras e ensinamentos sobre uma brincadeira muito divertida que ele teria aprendido num lugar muito distante dali e que as criaturas de lá usavam as bolas e redes para diversas modalidades de diversão, regadas a muita comida e bebida. Tais referências foram logo experimentadas, aceitas e recomendadas pelos amigos e pelos amigos dos amigos, seguindo num crescendo afetando até o mais alto escalão, e, como não poderia deixar de ser, fora bem aceita, praticada, fomentada e estimuladas por todos, reconhecendo se tratar de um grande líder aquele que lhes trouxera tamanha alegria.
O casamento se deu em dia claro até quando a lua escondeu o brilho do sol. Luar radiante se fez plena em suas vestes ritualísticas assumindo-se de vez cacique da tribo, já que Sol Escaldante, de verde e amarelo, desmaiara num porre de dar dó.
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