mendigo

Dudu Coreia

Morava num bairro de Belford Roxo e pegava o ônibus todo dia pra escola na Igrejinha. Levava uns cinco minutos de casa até o ponto de ônibus e quase sempre esbarrava com uma figura chamada Dudu Coreia. Ele era aquele maluco beleza da vizinhança que todo mundo conhece, mas ninguém sabe bem da sua história. Minha mãe dizia que ele já era maluco quando ela era criança. Que corria atrás dele gritando: Dudu, já sarou do c… Ele pegava uma pedra e saia correndo atrás, até que minha mãe se escondia no terreno que um dia meu avô tentou fazer de cinema. Ela subia onde ficaria a sala do projetor e balançava a mão pela fresta. Dudu nunca entendia como ela conseguia subir até lá. Ficava esperando até se cansar e ia embora.

Mas o Dudu Coreia da minha época era diferente. Camisa surrada do Flamengo, calça de helanca azul que já deve ter sido de colégio, aquele pé inchado de tanta cachaça que ficava metade no chinelo comido, metade de calcanhar no chão. Ia falando pela rua 4 toda. Metade do que ele falava era inútil, metade parecia lúcido demais. Um dia o Flamengo goleou pela Libertadores. Dormi antes do fim do jogo e ele sabia o resultado: 8×2 pro nosso Flamengo. O Collor sofria impeachment e ele não tava nem aí. Tudo que ele fazia era acordar cedo e ir pro bar que abria primeiro. Lá juntava todos os bebuns do bairro, que uma hora depois iam pra outro bar, que era o preferido deles, mas não abria tão cedo. Pra mim, Dudu era feliz, pois não tinha consciência dos problemas e suas preocupações eram as mesmas, dia após dia.

Anos mais tarde, casei e vim morar em Nova Iguaçu. Aqui conheci a Dona Maria. Idosa, moradora de rua, varria a calçada, estava sempre cercada de cachorros e era sempre simpática quando a cumprimentávamos. Ela não sabe, mas é famosa na internet por um vídeo em que responde um “bom dia, vovó” com um monte de palavrões. Alguns idiotas costumam gravá-la e colocar a resposta na internet. É comum ouvir ela xingar os lixeiros pela manhã. Ela os chama de ladrões, provavelmente por terem jogado fora suas coisas achando que era lixo. Sempre que eu a cumprimentava ela respondia: “bom dia, meu lindo!”

Eu ajudava vez ou outra a Dona Maria, até que veio a pandemia. Primeiro me tranquei em casa, depois saia bem pouco com medo de tudo e de todos. Vi o dinheiro minguar e a distância que me separava da Dona Maria diminuía. Comecei a pensar em como deveria ser doido, alienado dos perigos do cotidiano e dos rumos da política que definem a nossa vida. Me lembrei muito do Dudu Coreia e como eu tinha tantos objetivos, tantas coisas importantes pra fazer num dia e ele só queria beber e saber o resultado do futebol.

Primeiro perdi a conta no banco, depois o carro, até que fiquei sem dinheiro pro aluguel. Guardei minhas coisas na casa de conhecidos, peguei minha camisa do Flamengo e fui pra rua. Dancei, mesmo debaixo de chuva. Agora o Dudu Coreia era eu.