feijoada

Dormir de barriga cheia às vezes não é tão ruim

Era uma terça chuvosa, já passava das dez da manhã quando Anaya, minha esposa, pergunta “o que iremos almoçar?”. Não titubeei, olhei para o tempo e sugeri uma feijoada, prontamente aceita. Em alguns minutos, lá estava ela com a lista de compras. Peguei e coloquei no bolso, como se já não soubesse o que comprar. Chego todo feliz com as compras: carne seca, lombo, paio, toucinho… Anaya olha, “ué, cadê as orelhas, os pés, a barriga, a garganta do porco?”. Naquele momento, percebi que não entendia realmente o que era essa iguaria trazida pelos nossos irmãos africanos. Almoço pronto, isso sim é uma feijoada!

Acabo de comer e encosto no sofá, que perigo! Lembro de minha mãe: “Filho, nunca deite de barriga cheia!” Já era! Acordei no parlamento. Naquele momento estavam discutindo medidas importantes. Quem presidia a casa era Aqualtune (rainha do Congo), que liderou dez mil homens na guerra contra Portugal. Capturada, foi vendida como escrava e trazida para Alagoas, onde teve três filhos: Ganga Zumba, Gana e Sabina, que mais tarde daria à luz a Zumbi dos Palmares. Com a chegada em massa dos negros no Brasil, inicialmente nas terras da Bahia, isso no tempo colonial, as tribos foram se fortalecendo e o negro, cada vez mais forte. Com a chegada de Dandara, que a essa altura já é esposa de Zumbi, que trava uma luta pelas terras do cacau que o governo português queria se apossar. Se ocorresse isso, seria um passo para destruição da república dos Palmares e a volta da escravidão. Eu estava meio perdido no meio de tanta gente importante e de diferentes posturas. Uns falavam alto, outros nem tanto. Pareciam gente de tempos diferentes, algumas com discrições, outras me pareciam muito familiar. A minha direita tinha Castro Alves (poeta da Abolição), Milton Gonçalves (ator, diretor e cantor), Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho, escritor e arquiteto), Ruth de Souza (referência dos negros natos) e Glória Maria (repórter que fazia a cobertura). Os assuntos foram colocados para votação:
Reconhecimento da cultura africana.
– Luta contra o racismo e direito de liberdade.
– Reconhecimento do racismo como crime.
– Remarcação dos quilombos, entre outros.

“Todos prontos?”, grita uma voz firme no fundo do plenário. É Aqualtune, ao lado de Zumbi e sua esposa Dandara. Os ilustres participantes punham-se de pé, mais uma forte batida na porta interrompe a votação. 

Abdias do Nascimento (ator, poeta, escritor e ativista luta pelos direitos civis da população negra) vai até a porta e lá se encontra um negro de estatura baixa para os padrões afro-brasileiro que pede para entrar. Abdias diz ao pequeno negro “estamos resolvendo causas importantes, crianças não são permitidas no recinto”. Uma voz respondeu com um pouco de indignação, “me chamo, Sebastião Bernardes de Souza Prata (Grande Otelo, ator, compositor e cantor negro brasileiro)”. “Pois não, senhor! Fique à vontade!” Em menos de duas horas todos os assuntos postos em votação foram aprovados por unanimidade.

Votação presenciada pela repórter Glória Maria, encaminhada pela mesma e entregue a Nilo Peçanha (presidente do Brasil) para publicação em diário oficial. Há indícios que o resultado nunca chegou à redação do jornal e muito menos ao diário oficial. Acordo assustado com Anaya me sacudindo: “Você tem compromisso. Dormiu por mais de quarto horas.” Olho para ela e falo: “Quando fará outra feijoada?”