Gal Costa

Dois mil e dez

Só a cabecinha… quase toda dia era assim, quando Júlia saía e quando chegava. 

Morava na casa de baixo e era inquilina da senhora que residia em cima: dona Iraci. Uma pessoinha magra e de baixa estatura. Tão educada, quanto curiosa. Seus olhos arregalados e orelhas grandes pareciam anatomicamente projetados para seu passatempo predileto: tomar conta da vida dos outros. 

Claro que isso trazia certo desconforto para Júlia. À medida que subia a ladeira, já podia ver por cima do muro a sempre atenta Iraci. Como esta tinha estatura baixa e o muro possuía uma altura razoável, demorava algum tempo para que a vizinha pudesse ser notada. No entanto, era só subir um pouco mais a rua e já se tornava possível enxergar a enxerida senhoria.

A exceção ocorria apenas às sextas-feiras, quando dona Iraci se trancava em casa, colocava o antigo toca-discos no volume máximo e desfilava uma diversificada trilha sonora dos anos sessenta, setenta e oitenta. Toda vez que isso acontecia, ficava imersa em suas memórias. Então, sua audição, que já não era lá essas coisas, parecia se fechar de vez para o resto do mundo. 

Justamente aquele era um desses dias e, por mais que Júlia chamasse, nada da cabecinha de dona Iraci dar as caras pela janelinha da porta. Enquanto isso, os Novos Baianos cantavam alegremente na vitrola.

A inquilina estava aflita. O encanamento havia estourado e sua cozinha mais parecia uma piscina. Somente a proprietária tinha o contato de seu Oscar, o faz-tudo que sempre resolvia esse tipo de problema. 

Para piorar, Júlia precisava sair logo. Era diretora de escola e o ano letivo estava acabando. Os pais de alunos da educação infantil faziam questão de uma linda formatura. Afinal de contas, em dois mil e onze, seus queridos pimpolhos iriam iniciar o ensino fundamental. Era bastante compreensível a expectativa dos dedicados familiares, mas Júlia sabia bem o quanto de esforço e organização seriam necessários para atender a todas as demandas.

Depois de vinte minutos de batidas na porta, toques de campainha, chamamentos em alta voz e até mesmo ligações para o telefone fixo da casa da vizinha, o disco acabou e, antes de iniciar o próximo, Iraci finalmente abriu a porta. 

Desculpou-se, disse que não tinha escutado antes e falou que Júlia poderia ir trabalhar sossegada, que ela mesma receberia Oscar e tudo seria solucionado. Diante da desconcertante gentileza da vizinha, a diretora somente agradeceu e partiu em disparada rumo ao colégio.

Até que não se atrasou tanto. Por incrível que pareça, naquela sexta-feira, o trânsito estava bom. Parecia que sua sorte, finalmente, começaria a mudar.

Na reunião com a equipe docente, a professora Beatriz explicou que uma das mães tinha pedido pra cantar: Maria da Graça, a mãe do Gabriel. Júlia estremeceu: era só o que faltava! Depois de todo aquele stress matinal, teria que ter muita paciência e capacidade de persuasão para fazer uma mãe de aluno compreender que formatura escolar não era show de calouros. 

Porém, passados uns instantes de repentina e intensa indignação, a diretora caiu em si.  Não era possível, mas, se ela estivesse com boa memória, conhecia bem a mãe de Gabriel, só que por outro nome.

Passados doze anos, Júlia acorda e se dá conta que tinha sonhado com a já falecida “cabecinha”. Lembrou daquela emocionante coincidência do dia em que sua vizinha ouvia os Novos Baianos, enquanto sua cozinha alagava, e, algumas horas depois, soube que Gal Costa, cujo filho era aluno da escola, iria cantar na formatura das crianças. Tinha sido uma linda noite, muito especial, em que a diva da música cantara “além do arco-íris”. 

Despertando dos sonhos e recordações, a professora foi checar suas redes sociais. Quando ligou o celular, não podia acreditar no que lia. Uma enxurrada de lágrimas começou a lavar seu rosto; depois, os móveis da sala. Teve a genuína sensação de que seu choro estava molhando a própria casa bem mais do que o inoportuno vazamento daquele remoto dia. Maria da Graça Costa Penna Burgos, mãe de Gabriel, havia partido.