Marcele desce, apressada, os degraus da escada que liga o segundo andar à sala de jantar. Ao meio da sala, olha, com uma expressão interrogativa, do pai para o avô, e depois para mãe, e pergunta:
– Ele já foi?
– Há muito tempo! – Exagerou Heitor, o pai.
– Mas ele ficou de me dar carona… Todas as terças feiras! E hoje é terça!
– Agora “Inês é morta”. Vá de ônibus. Se apresse que já está atrasada – disse Dona Jerusa, a mãe, levando as louças do café para cozinha.
– O que ela disse? Que raio de Inês é essa? – pergunta Marcele, confusa.
– Ela disse que não adianta reclamar – explicou o avô, Oswaldo, que fazia palavras cruzadas à mesa do café, e concluiu – Só isso!
– E por que ela não fala isso? Eu não sei que raio de Inês é essa.
– É só um ditado popular! Meu Deus-pai! O que será que ensinam a essas crianças nas escolas?
– Português, Matemática… Matérias de ditados, não conheço! – respondeu Marcele.
– Ditados populares, minha neta querida – Começou Seu Oswaldo, desistindo de vez das palavras cruzadas – São expressões que falam sobre experiências, situações vividas no passado, que deixaram aprendizados para as gerações futuras. Os ditados traçam uma espécie de paralelos, entre o passado e o presente, tomam como referência os desfechos de situações, conflitos já vividos, para auxiliar nas soluções de dilemas atuais.
– E o que a tal Inês tem a ver com meu irmão me deixar à pé?
– Nada! Na verdade, o ditado faz referência ao Dom Pedro I, que ao se tornar rei de Portugal ordena que desenterrem os restos mortais de Inês de Castro, “a mulher amada”, e os coloque ao seu lado no trono de Rainha de Portugal. Então um de seus conselheiros diz essa célebre frase que a sua mãe repetiu ainda pouco: “Agora Inês é morta!”.
– Nossa! Uma história tão grande para explicar uma frase tão simples! – Marcele faz pouco do que ouvira.
– Não é bem assim – voltou a falar o pai – O ser humano é o único ser vivo com capacidade infinita de evolução. A tecnologia que hoje apaixona e escraviza a humanidade foi construída por diversas gerações. A revolução industrial de 1760 só foi possível graças os estudos e descobertas anteriores. O ser humano não é eterno, mas as suas obras e seus ideais podem se propagar através dos estudos, pesquisas e registros, que atravessam gerações.
– E os ditos populares também – Interveio Seu Oswaldo, eufórico – Eles resguardam a história, preservam as memórias, resgatam valores e orientam para o futuro.
Marcele dá dois passos em direção a escada. Iria voltar ao seu quarto, buscar a mochila, mas balança com uma tontura repentina, um suor gelado percorria a pele. Ela leva as mãos às têmporas… Parecia que os sentidos iriam lhe faltar a qualquer momento… Nesse instante, um portal se abre! Um milagre! Ela hesita… Mas a curiosidade a vence. Há uma escadaria após o portal, que ela segue; o calafrio contorna sua espinha. No final da escadaria um salão, enorme, ricamente decorado com tapeçarias e candelabros. Marcele entra e percebe os olhares espantados das pessoas ao seu redor; ela também estava assustada com tudo, inclusive com as suas roupas. Trajava um elegante vestido de época. Uma mulher a sua frente sussurra para amiga:
-Olha! É Inês.
Marcele fica confusa demais, olha-se em um espelho e vê, abismada, a imagem de Inês de Castro refletida… E não a sua! Ela estava no ano de 1355, em Coimbra, Portugal, reinado do Rei Afonso IV… Inacreditável!
– Você não pode estar aqui! – Exclamou uma mulher bastante idosa olhando-a com censura.
– Mas eu não sou… – Começa a explicar Marcele, mas as palavras foram interrompidas por risadas, murmúrios… Logo o salão se encheu e ela se viu envolvida em uma teia de comentários maldosos, olhares maliciosos, intrigas palacianas, conversas sobre amor proibido e política.
De repente, dois guardas trajando fardas reais, em suas montarias, chegam à porta do salão. A multidão se aparta para os lados abrindo um caminho entre Inês, digo, Marcele e os guardas da coroa. Eles adentram com seus cavalos marchadores em direção a ela. Marcele se sentiu cambalear com aproximação dos homens. De repente, tudo ficou escuro.
– Marcele! – Uma voz familiar cortou o silêncio. Era seu pai.
Ela abriu os olhos e percebeu que estava deitada no chão, próxima à escada, na sua sala.
– O que aconteceu? – Murmurou confusa.
– Você caiu da escada, na correria – Disse seu pai, preocupado – Eu te avisei para ter cuidado.
Marcele se levantou com a frase da mãe ecoando em sua mente: “Agora Inês é morta!”
– Ainda aí, Marcele? – Dona Jerusa reaparece na sala.
– Mãe! Levei um tombão da escada!
– Está viva? – Perguntou a mãe recolhendo a toalha da mesa.
– Sim, mas… Estou muito cansada para ir de ônibus!
– Vai cansada mesmo, filha! O cansaço de uma vida sem estudo é muito maior. – diz Dona Jerusa enquanto segue para o outro cômodo da casa.
Marcele olha para o pai e pergunta desanimada:
– Isso também é um ditado popular?
– Não! É sabedoria de vida! – Respondeu o pai.
– Se eu fosse você, não desprezaria esse conselho – Completou o avô, voltando as suas palavras cruzadas.
– Afinal quem não houve conselhos, ouve coitado!
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