Carro de aplicativo

Deslize ou vertigem

Se por descuido ou excesso de bebida — até hoje — ninguém sabe a verdadeira face dos fatos. De concreto restou a ladainha de comentar a vida alheia.

A observação, contundente, ficava a cargo do espelho, no banheiro, delatando os cabelos grisalhos do protagonista, registrando a chegada, desajeitada, dos quarenta anos… A vida passava na testa do sujeito, de efetivo só a solidão; parecia um veículo desgovernado, na contramão, ausente de direção… O comentário encerrava a descrição do cara.

O ofício de motorista de aplicativo jogava todas as esperanças na estrada, num momento após o outro, vivendo igual porco, trabalhando pra comer. Esperando a batalha acabar, torcendo por um colo; desesperado a procura de afetividade, carinho, beijo na boca, etc.
O vendedor de latão de cerveja, da entrada da estação, analisava o bebedor compulsivo. Todas as noites contava com o consumidor. Ele sentava num banquinho de plástico, fazia a crônica da cidade: ria, chorava e esvaziava o isopor do camelô.

De vez enquanto as coisas ficavam turvas, os olhos embaçavam; aí, quem sofria era a realidade, pois a imagem distorcia… Pagava a conta, saía de mansinho, perdia o prumo. A vertigem parecia trapaça da vida, prejudicava o controle motor, vinha de carona com a amnésia alcoólica, não lembrava nada.

Morava só, próximo à estação do trem, em Morro Agudo, vira e mexe amanhecia no lar com uma mocreia; no entanto, jurava, na madrugada, ter seduzido uma beldade. Embaraçava os detalhes do romance, esquecia o nome da mulher, trocava as estações, debochava da memória. O desastrado voltava, sempre, aos cuidados do amigo, garantia no sereno da calçada a cota etílica; derramava as suas mágoas na paciência do camelô, as carências, os desalentos, a falta de autocontrole. Confessava as maledicências da bebida…

Relatava a experiência ao ouvido atento, na madrugada triste — o caso singular — remetendo ao acontecimento recente. Disfarçando a timidez, abria o peito, revelava uma paixão repentina, fruto da vertigem…

Diz o contador de história, o piloto de carro de aluguel, ter apanhado uma passageira linda, tipo avião, um monumento, uma gata de perder o fôlego, na Central do Brasil. Numa corrida para Caxias, precisamente, na Favela do Lixão.

O velocímetro testemunhou o barulho do motor, as batidas aflitas do coração do condutor, em compasso com as cruzadas de pernas da tentação… Mandou aquela cantada, sugeriu uma cerveja. A figura, simpática, aceitou. Foram parar numa barraca na favela, acomodaram-se na mesa, tomaram um porre, embolaram num prazer irrecusável!

Pagou a conta, levantou, sendo acometido da labirintite; a partir daí, ganhou asas, ingressou nos aposentos da conquista, entregou a alma ao acaso…

Acordou, no dia seguinte, coçando o saco do travesti; escapuliu da cama, deu linha na pipa, abandonou a cena de amor, colocando a culpa na vertigem…

Depois da confissão, com medo de si mesmo, parou de beber, procurou refúgio na religião… O vendedor de cerveja perdeu o freguês, encucou na dúvida: seria deslize ou vertigem?