De janeiro a dezembro

Olhando pela janela de casa, eu tomava café, relia o jornal do dia anterior e dialogava com a insônia. Na verdade, nunca sabemos se é cedo ou tarde e a impossibilidade de apreender e reter o tempo é tema que, com certeza, já transitou pelas mentes mais brilhantes e também pelas mais distraídas. Um gato negro passou por cima do muro esburacado e sem reboco, que abraçava o quintal em que estavam duas pequenas casas do subúrbio, bem em frente a minha. Eu observava. Para compor a cena, uma solitária folha de jornal, no mesmo momento, dançava embalada pelo vento, enquanto em sua suavidade atenta e apressada, o gato seguia o seu destino.

A lua cheia convidava ao passeio. O gato negro também. Deambular pelas ruasdo subúrbio do Rio durante a madrugada é tão inseguro quanto sedutor. Contudo, aceitei o convite e rapidamente pus-me, somente com as mãos nos bolsos, a andar pelos já familiares e desconhecidos espaços das ruas que são sempre, e democraticamente, de quem as explora.

Ainda no início da caminhada, aproveitando o que seria talvez o último trajeto do dia do ônibus que tinha como destino o centro do Rio, resolvi completar o meu caminho de forma mais ágil, e refrescar as ideias substituindo a tela da TV pela janela do coletivo, lugar em que os pensamentos se ajeitam e o tempo passa como em um filme. Lembrei que o jornal não informava quais seriam os novos longas em cartaz no
cinema e na incerteza dos filmes, senti o tempo passar mais devagar.

Chegando na Avenida Brasil, quatro gritos ecoaram dentro do ônibus quase vazio. Dois, anunciavam um assalto, dois eram de puro pavor. Eu emudeci com o susto. Os assaltantes tinham o semblante abatido e obscuro. Um chegou a mencionar que não comia desde o dia anterior. Eu não tinha de valor comigo. Sequer algo que me identificasse. Naquele momento era apenas transeunte em uma cidade enorme, assustadora e bela, sob o escuro da noite. Permaneci imóvel, apenas espectador do ocorrido.

Não havia areia da praia nem nos bancos nem nos degraus do ônibus e nem solo de saxofone. Após a descida dos criminosos, a melodia era a do mínimo. A beleza da rotina do dia claro esconde o que a noite evidencia com tanta contundência. À noite, as carências não passam despercebidas. Eu podia nitidamente ouvir o cantar do silêncio. Nas ruas, a paisagem permanecia na penumbra. Somente se destacava o relógio da Central do Brasil, capenga e erguido imponente entre cobertores encardidos, sacolas sujas, corpos quase despidos e mãos vazias.

Retornei para casa dentro do mesmo ônibus circular, enquanto os primeiros trabalhadores já despontavam como estrelas agitadas na Avenida Brasil. O tráfego no contra fluxo é sempre tranqüilo. Nas calçadas, os poucos passos eram apertados. Cheguei e retomei a minha rua por direito. Coletores de lixo já trabalhavam barulhentos.

O cotidiano não deixa dormir e tira o sono tanto quanto as notícias da Tv. Tomei mais um café para acordar a escrita com prazo de entrega. Da janela entreaberta, vi os olhos do gato que brilhavam de dentro do bueiro aberto, ao lado de uma flor solitária e azulada, nascida em lugar impróprio. Era já manhã quase completa. O cheiro de café e de comida começava a espalhar-se. Abençoada a vida começava, perto dos medos e longe dos olhos do Cristo.