Assinaram a tal Lei, disseram que era liberdade. Mentira!
Joana e Benedito foram cuspidos da fazenda como dois cães sarnentos. Com um misto de alívio e medo, estavam livres, mas sem terra, nem comida, só fome e poeira na cara. A estrada era um convite para o Rio de Janeiro, onde havia o sonho de uma vida digna, mas não tardou a descobrirem que a liberdade era só uma corrente invisível. Promessa de trabalho? Só para branco. Para preto era porta na cara e polícia no cangote.
Subiram o morro, não por opção, mas porque era o único pedaço de chão onde a vida ainda cabia. Ladeira acima, barraco em cima de barraco, lama, miséria. Fincaram raízes, os filhos nasceram, cresceram e morreram ali. Vieram os netos, os bisnetos – sempre carregando no sangue a marca da rejeição.
As gerações seguintes nem sonhavam mais. Era nascer, trabalhar para sobreviver e morrer esquecido. Quando a polícia subia o morro era porrada sem motivo. A cidade só lembrava deles para chamar de ladrão. O preconceito era o mesmo, só vestia roupas diferentes. No asfalto, eram vistos como ameaça; no morro, sobreviviam como podiam.
Pedro, mais um descendente da família, tentava romper o ciclo. Ele nasceu com olhos de quem queria ver o mundo além do morro. Tentou. Era bom com palavras, lia jornal velho achado na feira. Chegou a passar numa escola técnica, mas teve que largar para ajudar em casa. Rejeitado em entrevistas pelo jeito de falar, pela roupa simples, pela cor:
— Você é bom, mas seu perfil não combina com a empresa.
Veio a ditadura, depois a redemocratização, e o morro seguiu em guerra com a cidade. A polícia subia atirando, o tráfico descia contra-atacando. A bala escolhia seus alvos pela cor e pelo CEP. Pedro teve dois filhos: Elias, o mais velho, herdou o mesmo olhar inquieto do ancestral escravizado. Mas, dessa vez, não havia mais esperança — só as grades invisíveis da exclusão.
Elias cresceu ouvindo histórias de luta e humilhação. Viu a mãe chorar pela falta de comida. Viu o pai ser espancado injustamente pela polícia. Viu amigos de infância desaparecerem, engolidos pelo tráfico ou pela bala perdida.
Aos dezoito anos, Elias, cansado de tentar, escolheu o caminho mais curto: se juntou à facção que dominava o morro. Lá, encontrou respeito e poder — algo que a sociedade nunca lhe oferecera.
Numa tarde abafada, no meio de uma abordagem tensa, Elias apertou o gatilho. O homem que caiu, branco, engravatado, era apenas mais uma peça de uma estrutura que sempre lhe negara dignidade. A cidade clamou por justiça. Elias foi preso e condenado.
Mas, atrás das grades, a pergunta ecoava: quem puxou o gatilho? O jovem de mãos pretas ou o país que, desde Joana e Benedito, rejeitou todas as suas gerações?
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