Como aplicar a filosofia à literatura

Para o tema estrela, veio-me à cabeça uma metáfora do filósofo italiano Giorgio Agamben: cada tempo é formado por suas luzes – na idade média, a Igreja, no Iluminismo a razão, a ciência, depois o socialismo, o liberalismo, e hoje temos lá nossas luzes – mas, para o filósofo, o verdadeiro contemporâneo não é aquele que olha as luzes de seu tempo, mas o escuro. Para materializar tal metáfora, ele utiliza-se da noite: quando olhamos o céu e vemos estrelas salpicando-o, também vemos partes escuras. Porém, tais partes escuras são nada menos que estrelas tão velozes e distantes de nós que suas luzes não conseguiram nos alcançar. Ou seja: o escuro do céu são estrelas velozes demais. Observar as estrelas fugidias, disfarçadas de escuridão, eis o desafio do nosso tempo.

Após essa associação entre o tema estrela e a metáfora de Agambem, passei duas manhãs tentando criar imagens realistas que dessem conta da ideia. Vieram-me à cabeça:

 

  • Um casal, trintepoucos anos, entediado no apartamento novo, onde motos barulhentas passam o tempo todo. A moto passa, o barulho fica. Em vez de olhar o barulho, em vez de olhar a moto sem placa, olhar o entusiasmo de viver perigosamente dos jovens que pilotam as CGs 125. Ao descobrir a beleza de tal obscuridade, o casal sai de sua vida pequeno burguesa e vai viver. (ficção contemporânea para a classe média branca do eixo Rio-São Paulo);
  • Dois priminhos, nos anos 90, jogando Mario Kart num Nintendo 64. Num determinado momento, um deles – o líder da corrida – joga uma casca de banana pra trás e faz seu pequeno adversário escorregar e perder velocidade. O carro passa, a casca de banana fica. Em vez de olhar o carro, em vez de olhar a casca, olhar a potência do moleque ao utilizar-se de uma artimanha pra vencer, a pulsão de vida que o faz querer ganhar e ser alegre. (infantojuvenil);
  • Na zona rural, um cavalo deixa rastros de merda numa estrada. Não olhar a merda que fica, nem o cavalo que vai. Olhar a estrada. (Causo de zona rural, leitores mais velhos devem gostar disso).
  • Num leito, um homem traído pelo amigo – que o baleou pelas costas – morre. O espírito se vai, o corpo fica. Não olhar o espírito que vai, nem o corpo que fica. Olhar o impulso de vingança que ultrapassa os limites da existência corpórea. (parece ser um bom terror, misturado com suspense, perguntar ao Hedjan depois).

 

Para o tema estrela, vieram-me todas essas ideias a partir da metáfora de Giorgio Agambem. Anotei-as para desenvolver depois, mas não escrevi nada. Pensando bem, recuso-me a escrever qualquer coisa nessa noite. Não por falta de tempo ou bloqueio criativo. É uma escolha estética. Não escrevi nada porque vocês já escrevem demais. Vocês são um bando de grafomaníacos e os textos de vocês, as palavras de vocês, são as estrelas do firmamento. As palavras de vocês – um monte de traumas disfarçados de ficção – são as luzes desse tempo. A escuridão que nos escapa, hoje, talvez seja o silêncio.

A estrela mais brilhante, ainda que sua luz não me alcance e pareça um breu, está no conto que escolhi não escrever.