Todas as tardes, na hora em que o sol murcha na copa do arvoredo, a louca aparece no começo da rua em que moro. Quando está prenha, caminha em passos largos, com uma das mãos a sustentar o ventre. De um tempo pra cá, movimenta-se um pouco mais ligeira. Teve outro filho há um mês.
Todos sabem no bairro que ela serve de alimento aos sórdidos apetites de homens ditos normais. No leito ocasional dos terrenos baldios e nos desvãos da escada, eles lhe enchem as entranhas de filhos e mais filhos. Claro, nunca lhe ofertaram a machura do apoio, quando ela se contorce e cai no calçamento gemendo o início de maternidade. Fazem o contrário: aguardam o fim do resguardo e engravidam de novo a coitada.
Hoje saio ao portão na hora que ela vem e fico perturbado. Sempre olho para o chão quando se aproxima, para não ver os seus pés encardidos e as coxas sujas, pelos rasgões de seus andrajos. Hoje, porém, não agirei assim. Vou demorar os olhos na suja graça de seu corpo [vê-lo] ao certo com olhar diferente. Ou então com uma visão de louco.
Estou louco, talvez. Talvez porque tanto posso estar demente, quanto posso estar sendo vítima de um pesadelo. A loucura é, porém, bem mais consentânea com o que faço. De eu estar louco mesmo para sonhar desperto. Sonhar com os olhos abertos, enlouquecer em estado de vigília.
Sonhei com ela esta noite. Íamos de braços dados por uma rua de casas destelhadas. Nas janelas da esquerda e da direita, homens calvos e mulheres de peito no muro fazendo gestos obscenos e inclinaram-se para fora os torsos em ângulo reto com as fachadas. Os prédios se curvaram de repente por seu turno até que tocaram lá na cumieira formando um túnel. Numa veloz transmutação onírica o túnel virou o poço. Caímos todos para o fundo desse, cada um dos homens abraçando seu par em lento movimento helicoidal. Na queda eu sugava o seio da louca gostosamente sujo, enquanto ela tentava libertá-los de minha boca, empurrando meu rosto para trás.
Desperto com a sensação real dos dedos enclavinhados no meu rosto. Sento-me na cama, acendo a luz da cabeceira e vejo minha esposa enxugar com a ponta do lençol uma maminha toda babujada.
– Desculpa me – murmuro acanhado.
– Homem… na tua idade…
– Sonhava.
– Sei, não faria isso acordado. Mas o caso é que eu não sabia que era isto e sonhei que estava sendo violentada.
– Desculpa – repito – eu também não sabia que estava te causando um pesadelo.
– Não, não era um pesadelo – diz ela – engraçado, certas coisas que seriam bastante desagradáveis na realidade, em sonhos não são bem assim.
Sem que o soubesse, deu-me a chave dos sonhos. Lembro-me logo de um fato da infância.
– Já provaste hortelã com estoque de terra?
Antônio Fraga morreu em 1993, deixando uma obra cuja atualidade é inquestionável. Nos anos 1940, foi o primeiro a construir uma estrutura ficcional toda apoiada na sintaxe popular. Nascido pobre, filho de pais proletários, Fraga logo percebeu que falava em uma língua e escrevia em outra. Passou boa parte da vida em Queimados, à época Nova Iguaçu. O conto Coisa de louco faz parte do livro Desabrigo e outros trecos (acervo: Jonatan Magella).
Deixe uma resposta