Já na Sexta-feira Santa meu pai aparecia com uma caixa de bombom para cada um dos três filhos. Ele não sabia, mas jamais nos contentávamos com a curadoria da Nestlé e costumávamos realizar trocas. Abríamos as embalagens sobre a cama, iniciando intensas transações que, no fim das contas, costumavam descambar para ofensas. Quando chegamos às vias de fato, meu pai descobriu o esquema e nos obrigou a fazer uma auditoria para reaver os injustiçados.
Na última Páscoa que nos deu caixas de bombom, antes de nos entrega-las, ele pediu a palavra e discursou solenemente: “Artigo 1: se houver briga de novo, ano que vem não tem chocolate; parágrafo único: os três vão apanhar. De chinelo. Declaro encerrada a sessão”. Meu velho nunca se preocupava em colar pegadas no chão para nos catequisar em mitos infantis sobre coelhinhos. Quando ganhávamos os bombons, o que víamos eram as pegadas dos seus sapatos gastos chegando da labuta. Havia uma ciência entre os filhos de que ele era trabalhador, esforçado e que devíamos obediência ao seu léxico. Entretanto, já no sábado de manhã quando ele saía para trabalhar, brotava dentro de nós um desejo de violar a legalidade proposta pelo soberano.
Meus irmãos sabiam que eu era o mais corruptível. Eles me escoltaram pelos bastidores. Queriam saber se eu estava disposto a fazer negociatas espúrias. É claro, desde que fosse um esquema discreto. “Sem delações”, combinamos. E fomos para a cama com as três caixas – todo nosso capital político.
Cada um obteve as vantagens ilícitas que pôde: meus irmãos eram favoráveis à qualidade nas trocas, enquanto eu me sentia quase um operador do esquema, porque eles sempre vinham até mim para pedir favores: “quer trocar o seu Chokito por dois Smashs?” Eu sorria, ambicioso, e exigia maior cota na tramoia. A justificativa eram os riscos, afinal, poderíamos pegar dois, até três meses de cárcere privado.
Sempre tive mania de grandeza e exigi mais Smashs pra fechar a negociação. Isso foi me dando cada vez mais poder. No fim, meus irmãos ficaram com uma dúzia ou menos de Milkibars, Prestígios e Chokitos. E eu repleto de chocolates, na caixa, nos bolsos, talvez na cueca. Eu era um acumulador de poder.
O ponto alto da reunião secreta foi vê-los se digladiarem pelo meu único Sensação, aquele que você mordia e saía um caldinho rosa. Ao vê-los na minha mão, perdi todo escrúpulo e qualquer vestígio de moralidade pública. Verdadeiramente, abri um leilão sem licitação. “Troco meu Sensação por 5 bombons.” Eles reclamaram dizendo que eu não tinha limites, mas éramos todos sujos sobre aquela cama e me mantive firme. Quando nos levantamos, eu tinha quase quarenta bombons, entre Charges, Smashs, Rums e toda gama de chocolates ruins que a Nestlé produz, provavelmente com mão-de-obra infantil d’algum país subsaariano. Mas não era sobre comer, e sim sobre abrir a caixa e vê-la transbordando – talvez como adultos que gostam de consultar o saldo da conta bancária quando recheada.
No domingo eu tive diarreia e vômito. Meu pai abriu uma CPI. No começo, nos aproveitamos do direito de ficar em silêncio. Quando ele pegou o chinelo, todos os habeas corpus caíram. Sorte que minha mãe, a relatora, era uma grande estadista e nos livrou a cara. Também me deu um Floratil e um chá de boldo. Prometi nunca mais comer chocolate na vida.
Mas um ano passa e muda tudo. Na semana da Páscoa seguinte eu e meus irmãos já confabulávamos as vantagens de termos mandato vitalício de filhos. Até que na sexta-feira santa, em vez de caixas de bombom, meu pai trouxe três barrinhas de Diamante Negro. A vontade era de protestar pelo nosso direito consuetudinário de ganhar caixas. Era impossível fazer transações com barras. Mas, talvez envergonhados pelos últimos escândalos, silenciamos. Diante do nosso estarrecimento, ele disse com a voz embargada: “não briguem, imploro, nessa Pascoa eu só quero paz”. Perguntamos por que ele estava triste, sem vocabulário político. Ele não disse nada. Estava se licenciando do cargo por motivos de saúde.
Em duas semanas, o câncer do meu pai matou ele. Minha mãe assumiu o poder e nos governou bem, a despeito de algumas insurreições em nossa adolescência. Meus irmãos e eu criamos o hábito de nos juntar na cama para trocar lembranças sobre nosso pai. Nos tornamos adultos éticos e republicanos. Mas nenhum de nós jamais conseguiu comer outra vez um Diamante Negro. E, desde que vimos pegadas de sapato gasto na cozinha, passamos a acreditar em coelho da Páscoa depois de velhos.
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