Estacionei a cadeira de rodas no calçadão, na altura do Posto Seis e a praia estava irradiante como deveria estar naquele dia tão especial para mim. Meu pai fazia noventa anos.
Ele pediu para ver o mar. Nos intervalos das colheradas de sopa com pão e vinho que eu colocava em sua boca, ele disse que queria ver o mar. Havia muito tempo que eu não ouvia a voz do meu pai, assim, ao vivo. É pelas gravações de vídeos antigos que revejo a sua altivez. Nem acreditei quando ele disse que queria ver o mar. Chorei. Acredito que ele não tenha percebido que eu chorei nos intervalos das colheradas de sopa com pão e vinho que eu colocava em sua boca. Acredito também que meu pai não saiba mais quem eu sou.
O mar estava ali, imenso e todinho ao seu raio de visão. As ondas quebravam-se numa dança que só a natureza perfeita conseguiria harmonizar.
Fiquei ao seu lado observando a direção do seu olhar. Parecia absorver toda a vastidão daquela beleza. As gaivotas no céu imensamente azul, um avião anunciando uma propaganda de um refrigerante, a areia parecendo tapetes dourados refletindo o sol cintilante, as pessoas passeando no calçadão… Seus olhos cansados encheram-se de brilho e uma lágrima brotou, sintetizando a sua felicidade, marcando a sua face por instantes.
– Como o mar é lindo… – disse, ainda com a lágrima escorrida em sua bochecha. Eu nunca vi o mar. Como o mar é lindo…
Esse dia será inesquecível para mim. Meu pai falou três frases! Depois de muitos anos, ele falou três frases!
Ficamos mais alguns minutos em frente ao mar. Quando a sua cabeça encostou na cadeira de rodas, percebi que dormia.
O Mal de Alzheimer é uma das doenças mais cruéis que possa existir. Deleta de forma radical todos os arquivos de memória que podemos ter. É como se não tivéssemos mais histórias de vida. A doença rasga a nossa biografia. Meu pai foi velejador quando jovem. Conhecia o mar como ninguém. Mas a doença rasgou essas páginas que ele escreveu. É uma doença cruel demais. Porque adoece a alma também.
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