Ele andava vagarosamente e cambaleava pelas ruas já escuras da noite começada. Entre o céu e a calçada, seu mundo era limitado a uma muda de roupas surradas e a um velho guarda-chuva. De mãos dadas com a ressaca, não conseguia nem lamentar o fato de ter bebido além da conta durante todo o dia, apesar das restrições médicas. Nem viu esvaziar-se a garrafa de Sangue de boi. Não lembrava da última vez que havia bebido. Nem tinha o hábito de fazer isso com frequência.
Sentou-se na calçada, frente ao ponto de táxi, encostando-se no poste onde cartazes desbotados e ilegíveis observavam o homem de olhos semicerrados. Dois moradores das redondezas perguntaram se não estava bem. Não se ouviu resposta. Seus olhos, já totalmente fechados não puderam sequer perceber a ausência do guarda-chuva.
Passada uma hora, um taxista chamou uma ambulância. Não foi achada nenhuma identificação nos bolsos do homem, que a essa altura não tinha mais os velhos tênis nem a carteira quase vazia. Os curiosos revezavam-se. Pensou-se em utilizar um dos táxis para transportar o corpo imóvel, frio e apagado como uma estrela caída e estática. Os taxistas não acharam que fosse uma boa ideia.
Havia passado pouco mais de duas horas quando o socorro chegou. O homem já estava totalmente nu e uma senhora, saída da missa, nesse momento deixou ao seu lado uma vela gasta e incompleta. Seus cabelos estavam empapados e a vela não demoraria a apagar-se sob o vento insistente e o chuvisco gélido e cor de prata.
Por quase três horas o indigente esteve ali sobre a calçada e, desfazendo-se paulatinamente, finalmente reduziu-se a uma mancha de sangue ralo, retirada com água e sabão pela vizinha, que auxiliava o trabalho da chuva fina e insuficiente. Único vestígio de uma vida igualmente sem força e expressão escorrendo e escondendo-se no bueiro aberto. Os restos da vela também não insistiram no adeus. Só o céu chorou timidamente uma escassez que era de tudo. Até de existir.
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