Rebeca achou que era mentira. Uma desculpa para ninguém trabalhar demais naquele lugar. Esqueceu do que tinham lhe alertado e se distraiu executando aquele trabalho repetitivo mesmo depois do horário. Ouviu um barulho, mas apesar do pouco tempo trabalhando naquele prédio antigo de repartição pública, já sabia que ali era barulhento por natureza. Pegou suas coisas e saiu pelos longos corredores que davam acesso ao elevador do quinto andar.
Notou a porta aberta da sala dos arquivos e pensou ter visto um deles aberto. No que colou o rosto no vidro para conferir, notou um vulto ao seu lado. Lembrou de quando Dona Conceição alertara para que não ficasse depois do horário. Na hora deu de ombros, mas estava convencida de que ela sabia de algo.
– Não tenha medo. Me sinto muito sozinho aqui – Ouviu da voz calma e tentou responder com firmeza.
– Tudo bem. Já estou de saída – Disse Rebeca tentando encerrar o estranho papo.
– Mas já? Não tenho ninguém pra conversar tem um tempo.
Lentamente Rebeca foi virando para encarar a ameaça de frente e tentar escapar com frieza e dignidade.
– É que já passa da minha hora e me avisaram para não fazer hora-extra. Acho que não estão pagando…
– Estão sim. No funcionalismo púbico é obrigatório pagar hora-extra. Não pode é passar de duas horas por dia. Acredito que você estudou bastante para passar na prova daqui, não foi?
– Sim, sim. E você?
– Ah, eu estudei demais. Aliás, estou aqui até hoje por isso. Fui por décadas funcionário daqui. Cumpria além da minha função, trabalhava todas as horas-extras possíveis e acabei ficando por aqui, mesmo depois do fim.
– Do fim do contrato? Se aposentou?
– Bem, eu diria que estava prestes a me aposentar. Mas aí mudaram a lei trabalhista, mudou a forma de calcular o tempo de serviço… e eu desencarnei antes de me aposentar.
– Aí virou um… funcionário-fantasma?
– Mais ou menos assim. Muito apego ao trabalho, sabe? Tive medo de reclamar, medo de deixar o trabalho por fazer… Com tanto serviço pra ser feito, alguém tinha que trabalhar nessa repartição, né?
– Me sinto assim também. Parece que não termina nunca. É sempre uma pilha de fichas diferente pra cadastrar no sistema.
– Sistema? Eu sou do tempo das fichas de papel. Ainda tem fichas aqui dessa época nos arquivos.
– Quer saber? Vou largar esse emprego! Vou empreender. Abrir uma startup de paleta mexicana, sei lá! Só sei que não vou ficar no funcionalismo público o resto da vida ou além. Desculpa. Não é nada pessoal.
– Te dou a maior força! Isso não é vida. Ou jeito de morrer. Ou de permanecer aqui… você entendeu.
Rebeca juntou as economias e empreendeu. Não abriu uma empresa de paleta mexicana, mas um restaurante aconchegante que logo virou moda. Começou a fazer algum dinheiro. Mas aí recebeu outras visitas indesejadas como da vigilância sanitária, da postura municipal, do sindicato de bares e restaurantes, da ordem dos músicos e, por fim, dos bombeiros. Acabou fechando por não ter tanto dinheiro que desse para vencer tanta exigência burocrática.
Triste e chateada, Rebeca voltou à repartição pública em que trabalhava à noite. Apenas cumprimentou o guarda noturno, que ainda lembrava dela, e subiu até o corredor do quinto andar. Procurou o fantasma com o qual tinha conversado. Quando estava na mesma sala de arquivos, sentiu novamente aquela presença fantasmagórica:
– Que bom te ver de volta! Como está? – Disse feliz o fantasma.
– Quero meu emprego de volta. Sabe como faço para me reintegrar?
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