Já era um pouco tarde da manhã quando tocou o despertador do celular acordando Dandara. Naquele dia ela teria, a mando da diretora Vera Lúcia, que cobrir outra professora que não podia dar aula numa escola, num bairro distante. Sem entender nada, Dandara, sempre solícita, se preparou para cumprir sua nova missão: tomou seu banho, passou pelo corpo aquele seu creme especial para pele preta, bebeu seu café, comeu seu pão com ovos mexidos e se arrumou. De repente tocou em seu WhatsApp: “o Uber já está no seu portão!” era o recado da diretora Vera Lúcia. Ela, então, pegou suas coisas e saiu. Quando chegou no portão, quase caiu pra trás de susto. Viu um carro com um formato de uma abóbora. Mesmo sobressaltada, entrou dentro do carro, abriu o WhatsApp e estava o print do Uber: motorista Epaminondas / carro abóbora LTI.
– Epa… Epaminondas? – Perguntou assustada.
No que virou da poltrona do motorista um homem com cara de rato, sorrindo para ela, quase matando-a de pavor. O motorista, então, ligou o carro; no que este disparou mais veloz do que o pensamento, fazendo a professora Dandara gritar desesperada. Em poucos minutos o carro parou e Epaminondas disse com a maior calma do mundo:
– Chegamos!
Dandara, desfigurada pelo terror, saiu de dentro do estranho carro bem devagar e deparou com um estabelecimento que mais parecia um sítio do que uma escola. Uma linda menina negra com um laçarote amarrado no cabelo veio recebê-la:
– Seja bem-vinda, tia Dandara!
Deu-lhe um beijo no rosto, pegou-lhe pela mão e praticamente arrastou-a até a sala de aula. Chegando lá encontraram uma verdadeira algazarra – até guerra de bolinha de papel tinha. A menina do laço de fita gritou:
– A nova professora chegou!
– Nova professora nada! Ela só tá substituindo a professora Maluquinha hoje! – Respondeu uma das outras alunas de forma bastante hostil.
– É essa aí, é? – Perguntou outra.
– É essa aí, não senhora! Ela tem nome e é Dandara! – Respondeu a menina bonita do laço de fita que, depois, voltando-se para Dandara, disse baixinho. – Liga não! É um bando de entojada!
Constrangida e triste com a recepção e o olhar de animosidade das outras alunas, Dandara entrou pela sala e encontrou uma folha na mesa. Uma outra aluna foi logo falando alto e de forma grosseira:
– Isso aí é a chamada que a diretora falou pra você fazer antes da aula!
Dandara, então, pegou a folha e começou:
– Chapeuzinho Vermelho!
– Presente!
– Maria!
– Presente!
– Wendy!
– Presente!
– Vendedora de Fósforos!
– Presente!
– Alice!
– Presente!
– Narizinho Arrebitado!
– Presunto!
Dandara olha pra Narizinho, faz um risinho de deboche e diz:
– Engraçadinha… Mônica!
– Presente!
– Poliana!
– Presente!
– Chapeuzinho Amarelo
– Presente!
– Menina bonita do laço de fita!
– Presente!
Quando acabou de fazer a chamada, Dandara ia se preparar para dar a aula quando entrou na sala uma linda e elegante mulher com a pele mais branca do que a neve e com a maior sem-cerimônia foi logo dizendo:
– Bom dia! Sou Branca das Neves, sou a diretora desta bagaça aqui!
Chocada com a forma que aquela diretora se apresentava, Dandara respondeu:
– Prazer! Sou Dandara, a professora indicada pela diretora Vera Lúcia!
Fitando Dandara de cima e embaixo, Branca das Neves respondeu:
– Tô sabendo, mas achei que a Vera mandaria outro tipo de professora para substituir a professora Maluquinha!
– Outro tipo de professora?
– Sim! Tipo, uma professora mais clarinha!
– Como é que é?
– Ela está incomodada com a cor da sua pele, professora Dandara! – Respondeu indignada a menina bonita do laço de fita. – Só eu sei o que eu passo aqui nessa escola!
– Cala a boca, peste! – Gritou Branca.
– Não fala assim com ela! Você é louca ou é o quê? – Reagiu uma Dandara furiosa.
Branca das Neves botou as mãos nas cadeiras e disse:
– Nessa escola aqui quem manda sou eu e preta aqui é só pra isso! – gritando para o lado de fora. – Nastácia!
Uma humilde senhora negra, num vestido coberto por um avental surrado e lenço vermelho cobrindo a cabeleira crespa e branca adentrou a sala e disse:
– O café está na mesa criançada!
No que as crianças foram todas correndo até o refeitório. Se sentindo insultada até a alma, Dandara se negou chamar a polícia; resolveria aquilo da sua forma, com as próprias mãos. Voou no pescoço de Branca das Neves e as duas rolaram pelo chão da sala de aula. Logo apareceram Lobo Mau, Cuca, Capitão Gancho, Rainha Madrasta da Branca de Neve, Madrasta da Cinderela, Malévola, Rainha de Copas e Bruxa de João e Maria. Depois de conseguir se desvencilhar das garras de Dandara, Branca das Neves com a cara toda lanhada, esbravejou:
– Nós é tudo do CDLI (Comando da Literatura Infantil) e quando o bicho aqui pega os vilões e os mocinhos fecham tudo uns com os outros. Agora você vai ver só uma coisa, sua neguinha do pé russo!
Quando eles partiram para cima de Dandara, a bela professora voltou a ouvir o barulho de seu celular tocando ensurdecedoramente em seu ouvido. Fechou os olhos e quando abriu estava, no seu quarto, em sua cama; atendeu o telefone e ouviu a voz desesperada da diretora Vera Lúcia dizendo:
– Dandara, tá dormindo mais do que a cama, menina? As crianças estão aqui ansiosíssimas te esperando na sala de leitura para a “Festa do Dia da Literatura Infantil”!
Um conto que nos faz refletir sobre o racismo e suas consequencias.
Obrigado, querido! 😍
Muito legal, Márcio. Divertido e crítico ao mesmo tempo. Parabéns.
Obrigado, meu querido!